para o meu irmão, João
João,
Estou há um
ano para te escrever um texto. Achei que tinha de ser agora.
Faz um
ano que estivemos juntos pela última vez; juntos pelo menos neste plano terreno.
Foi num final de tarde de um domingo, do dia 30 de junho. Conversámos, rimos, ouvimos
música, vimos um vídeo dos Cold Play no Glastonbury Festival, com o Michael J. Fox a tocar guitarra, e ainda
te mandei por whatsapp um sketch dos Monty Python. Que ficou por abrir.
O teu timing
foi perfeito. Dissemos adeus, os dois de viva voz, olhamos um para o outro. Dei-te
um beijo. Deste um beijo a mim, e à Mãe. Saímos as duas.
No momento
seguinte, horas depois, quando regresso ao pé de ti, tu já estavas entre os dois
planos. Sereno, a dormir, imaginei-te a levitar na nave do Deckard, pelos
prédios acima, a correr com o olhar o escuro da cidade. Voltei a casa e tentei
manter-me acordada o mais que podia – até me ter deixado vencer pelo cansaço.
Às 4 da
manhã acordei com a tua voz tão nítida: ‘Rita!’ Minutos depois, o telefone
toca. Tinhas chegado ao terceiro e último plano. Numa perfeita trajetória no teu 250 GTO.
A morte é um
insulto. E há um ano que a estou a tentar insultá-la também.
Tenho dado
voltas à minha cabeça para ofendê-la, para a ferir, para lhe cuspir na cara. Ela
ri-se. Para onde foste não há regresso. Podias ter ficado mais um bocadinho.
Foste depressa. Foi tudo muito rápido.
Um ano
depois, concluo que, por agora, a única forma de a insultar é ocupar um lugar
onde só exista abundância – se ela subtraí, então eu coloco-me no que
acrescenta. E nisso, na intensidade de fazer tornar as coisas exultantes, consigo
fazer bem o exercício.
E coloco-te no
expoente máximo, das coisas que me trazem o amor e a alegria de te ter tido
como irmão por quase 47 anos. Uma abundância cheia de lápis e canetas encarnados,
de Ferraris lindos, todos clássicos, outros mais modernos, horas e horas de músicas,
de bandas sonoras de filmes, de chocolate, muito chocolate, do mar, do Guincho,
de noites de trabalho obsessivo, de manhãs de ténis intensivo, da Célia a chamar-te
‘fofinho’, da Beatriz a adorar-te como o melhor Pai do mundo.
Inverto a
ordem de tudo, para que isto faça algum sentido. Quando na verdade nada faz
sentido. Apesar da subtração, insulto a morte pela abundância em teres sido o
melhor irmão, o meu melhor amigo.
Adoro-te,
mano.
Desculpa, mas não consigo escrever mais. Talvez mais tarde.
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