Um conto para o meu Pai

 




Um conto para o meu Pai
13 agosto 1944 - 1 Maio 2023

Hoje vai chover. De certeza. 

Quinho ainda deitado na cama, já tinha sentido o calor durante a noite – sabia que iria chover. A chuva iria cair em pedaços de água, tão grandes e tão fortes, que ao bater no chão são como pregos a enfiarem-se na terra. E o barulho será ensurdecedor. E depois, a trovoada vem rebentar no ar. Como foguetes atómicos. Cada trovão desfaz o ar e reza-se para que não caia na cabeça de alguém. 

Quando Quinho saiu, o céu já se estava a tingir pelas gotas escuras, a formar o contorno de cada nuvem. Caminha até ao mercado para ir buscar o mata-bicho: um pão e duas maçarocas. Pela estrada cruzam as bicicletas, os chapas carregados de pessoas, cabras, sacos de mandioca e carvão. As crianças correm descalças e Quinho olha para os seus pés – tinha umas chanatas novas de napa escura. 

Ele gosta de ir andando a cruzar-se com as pessoas e a sentir a movimentação da pequena cidade junto à montanha. As mangas e o ananases estavam a chegar às bancas improvisadas, as galinhas estavam apertadas nas gaiolas e o cheiro do cabrito, frito em óleo escuro e espesso, já se misturava no ar. Ao fundo, nos campos de arroz, as mulheres andavam a trabalhar com toda a verticalidade das suas costas, enterrando três fios de relva - o rebento do arroz.

É ali que todos se encontram, mesmo aqueles que procuram no mercado o seu silêncio. Como o Quinho. Ele gosta do silêncio e encontra-o entre o mercado das frutas, dos legumes, das galinhas, dos saquinhos de plástico com óleo para fritar, do piri-piri e da farinha de mandioca. 

A oficina do Quinho fica nas traseiras do mercado, junto às barracas de peças de automóveis, bicicletas e motas. Há ainda a barraca do salão das senhoras, a Boutique e o barbeiro. 

Ainda a mastigar uma maçaroca, assim que chega, Quinho logo sente o cheiro, outro cheiro que tanto gosta. Do óleo e da gasolina, um ar que lhe lembra o orgulho de ter a melhor, e única, oficina daquele lugar. Tinha uma equipa de cinco homens a trabalhar consigo, mais a mulher da limpeza que lhe enchia os copos com água fresca e os papéis com carimbos.

Que tipo de limpeza havia naquele lugar?

Uma camada de óleo poroso preenche o chão, subindo pelas paredes do escritório do Quinho, o mecânico chefe - uma divisão escura, com uma secretária e uma cadeira, quatro pneus num canto e pedaços de ferro velho. Na oficina havia poças de água escura, de óleo ou de água misturada com óleo, ou ali só existisse óleo em vez de água. 

No espaço dos mecânicos, um telheiro comprido encostado a um muro, estavam sete carros. Depois havia pedaços de carros, peças soltas, que estavam ali há muito tempo, parece que teriam nascido ali, talvez já crescido debaixo do chão de óleo. Quinho teria “regado” tão bem aquela terra que, tal como o arroz, ela deu carros velhos, fez nascer montes de sucata, pneus usados, pedaços de para-choques e guarda-lamas, num caos de cheiro e de cor que quanto mais calor fazia, ou quanto mais chovia, mais cheirava e mais negro ficava.

O rádio estava sempre a tocar. A música era constante. 

Como a chuva se aproximava, Quinho mandou resguardar um dos carros que estava a levar uma pintura nova. Foi para um barracão, o das sacas de carvão - ao fundo da rua. Houve movimentação de carros. Depois, os homens começaram na rotina da profissão. Pegaram nas ferramentas, andaram para lá e para cá, num vaivém de chapa, borracha e óleo. 

O calor a subir do chão e a descer do céu, a música e as vozes dos homens que não se distinguiam das ferramentas - tudo era óleo, calor e trabalho. 

Finalmente, a chuva cai e toda a paisagem se dilui. Na estrada continuam a ir e a vir pessoas, cabras e mangas. Não se consegue ouvir o rádio e para falar é preciso falar mais alto. Quinho bebeu mais um copo de água gelada e rezou. Rezava várias vezes por dia. 

Veio a hora do almoço, os homens saíram. Quinho não se apercebeu de quanto tempo passou, nem quanta chuva caiu, nem quanto tempo ficou na Mesquita, até que chegou à oficina. A chuva tinha levado os carros. Sobravam os coutos, as peças e o óleo. O muro e o telheiro estavam cobertos de preto. Os homens voltaram - os carros tinham sido engolidos pela terra, pensaram. O cheiro que cobria aquele espaço elevou-se. Tinha acontecido uma magia, evidentemente, negra!

Chamaram o curandeiro que também tem a barraca dos telemóveis. Talvez fosse caso de se chamar a vidente, sugeriu um homem. E dois gatos. Porque dois gatos conseguem perseguir os espíritos, enquanto um distrai o outro investe e agarra-os pelas costas. 

Os carros tinham de aparecer. Era uma questão de encontrar o momento certo para que isso acontecesse. A hipótese de, durante a hora do almoço, alguém ter entrado na oficina e levado os carros, estava fora de questão. Foi um espírito, ou melhor, um espírito com alma de mecânico. Uma alma que tinha inveja do Quinho. Queria ser ela a dona da única e melhor oficina daquele lugar.

Foi então que apareceu Áua, a empregada dos copos de água e dos carimbos. E ela falou. Como estava a tentar ter a carta de condução, foi ela que levou os carros para o barracão, o das sacas de carvão. Assim, a chuva não estragava os carros, mas sobretudo assim ela aproveitou para limpar melhor aquela sujidade e ainda praticar a sua condução. A empregada dos copos de água passou a ser, a partir desse dia, também condutora de automóveis.

Quinho confirmou que conduzia bem e até piscava o carro no momento certo de piscar. 

FIM


Este conto foi inspirado numa viagem que fiz ao Malawi, durante o ano em que vivi em Moçambique. Foi escrito pela primeira vez em 2013. 

O meu Pai embarcou, em Lisboa, a caminho de Angola, no Paquete Quanza no dia 5 Fevereiro 1968, levou 17 dias até chegar a Luanda e daí seguiu para Bela Vista. Voltou a Portugal no dia 26 Abril 1970. Nesse outono conheceu a minha Mãe, em Lisboa. E casaram um ano depois em Dezembro de 1971. Em Angola, na Guerra, ele era responsável pelas viaturas, entre grandes camiões e jipes, da sua Companhia. Era o chefe da oficina e dos mecânicos. 

No meu ano em Moçambique, entre 2010 e 2011, fiz várias viagens e tivemos de ir a algumas oficinas com o carro - uma pickup Toyota Hillux. Sempre que entrava numa dessas oficinas ficava fascinada com aquele caos e lembrava-me sempre do meu Pai. As minhas idas às oficinas, e a paixão do meu Pai pelos carros e pela condução, que passou para mim, inspiraram-me a imaginar este conto. 

Faz hoje um ano que o Xicá partiu. Nunca leu este conto. Penso nele todos os dias, e não é por isso que sinto menos saudades. Pelo contrário.  

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