O que a vida nos pede (?)




Ilha do Ibo, Rua Maria Pia. Consigo descrever esta casa desde a porta da entrada até ao jardim da papaeira. Foi há 13 anos e as memórias hoje são sobretudo físicas. Sensoriais, emocionais e espaciais. E depois há momentos em que tudo se mistura. Sei exatamente o que sentia quando tomava duche ao final de um dia de calor atroz, de humidade insuportável. O cheiro do sabonete Palmolive amêndoas, e o corpinho da osga que, pacientemente, se punha no alto do tecto da casa de banho, a esperar o perfume daquele momento. A água era sempre fria. E não havia eletricidade na ilha. 

Lembro-me do espanto, quando abri a gaveta da cozinha para ir buscar uma faca, e os milésimos de segundos que demorei a perceber que tinha um escorpião na minha mão direita. Preparar-me para me sentar a escrever, ora em casa, ora na mesa do alpendre. O som da roupa a secar na corda. Esperar pela noite e as tréguas do calor, sentada à luz das gambiarras de petróleo. E desse cheiro viciante.

Um dos momentos em que tudo se misturou foi na noite em que recebemos o SMS da minha mãe, a contar que o meu avô tinha partido. Nesse momento, caía a maior trovoada da Terra naquele pedaço de ilha feito de rocha de coral.

À época das chuvas, antecedem dias de um calor que sufoca, e de uma humidade que se desmaia em cada passo. A chuva é o ponto mais alto do calor - uma espécie de limite máximo. A Terra desiste da luta, rende-se ao calor, e o céu, magnânimo, toma conta de tudo e despeja o excesso e a chuva que mais ensopa. 

Tinha uma posição estratégica para conseguir dormir nessas noites. Deitava-me de barriga para cima, como se fosse uma estrela do mar. Pernas e braços afastados. E procurava com a respiração controlar cada movimento do meu corpo. Quanto menos me mexe-se, melhor. Tal e qual a osga do quarto, que  sabia de onde vinham os maiores mosquitos. Raramente se movimentava. Tinha lugar cativo.

Há dois dias, acordei, em Cascais, a meio da noite, exatamente na mesma posição de estrela. A janela do quarto estava aberta para entrar alguma brisa. Um calor familiar, fez-me ligar um fio de memória. E quando a mente pede licença para a nostalgia entrar, deixamo-la vir sem dramatismos. Até com alegria. 

Começou em pingos que depois passaram a gotas gordas, cheias de chuva. E depois a trovoada. Ao início é como um ronco ao longe, como um navio que se anuncia. Depois vêm os relâmpagos evidentes. E então começa uma ópera de Wagner, com tudo ao mesmo tempo, muito alto. Como a janela atrás da cama não tinha vidro, só a rede mosquiteira, entrava um spray da chuva pela cabeceira da cama. 

Acordei, tinha deixado a janela da cozinha aberta e uma toalha lá fora no estendal. Fechei a janela e fui apanhar a toalha amarela. Tudo ao mesmo tempo. O céu cor violeta, calor, cheiro a terra. A mensagem escrita pela minha Mãe era simples, sem dramatismos. A tristeza, essa era a de cada um.

Ibo e Cascais.

A minha memória juntou os dois lugares numa noite de trovoada. A sensação de me sentir frágil e vulnerável, exposta a tudo. Um ser pequenino, no meio de um lugar distante. 

Fiz e dei tudo o que tinha. Arranquei pedaços do chão, com as mãos, para fazer novos caminhos. Atravessei muros de betão como se fossem bolhas de sabão. Entreguei-me, como moeda de troca.

Tive de me render. A trovoada quando tem de cair, ela cai. É assim que se faz cada dia na Terra. Do que se torna possível e não possível. Em cada dia, vivem-se trovoadas, que nos pedem, ou não, rendição. 

Desta vez, tive de ceder. A ópera terminou. Há uma ordem, a orquestra segue a pauta. Princípio e fim. 

E depois há o impensável, que é haver um dia seguinte que não pede licença para nascer. E é belíssimo. 

Talvez seja isso viver. Atravessar cada trovoada, resistindo ou nos rendendo. Tentar ver a sua beleza, mesmo que seja de um lugar escuro. Não vem de nós e não é a nós que regressa. 

Somos um grão de rocha, num pedaço de terra no meio do mar. Seja no Ibo, em Cascais, ou na Manta Rota. Onde agora estou.

Resta acreditar na Vida. 

Na natureza, se pensarmos bem, não há coisas negativas. Tudo é renovação, tudo é para avançar. Tudo nos leva para a frente. E se não for o fim, ainda, aprimoramos as ferramentas e as técnicas. 

E encontramos as melhores posições para dormir, apesar do calor. 

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- João, onde gostavas de ainda ir?

- Quero ir à Manta Rota! eu ainda vou lá ...


❤️

 



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