Mousse de Chocolate




Rachmaninoff Piano Concerto No. 2 in C Minor - I. II. e III.

Mousse de Chocolate 

Pai

Carta para o meu Pai


Meu querido Pai,

Ando a tentar fazer o que me pediu tantas vezes: «Trata-me por tu! eu tratava o meu Pai por tu». 

Ando a tentar perceber o que é viver sem si. O que é viver sabendo que em cada dia que começa, o Pai já não está aqui.

Ando à sua procura e encontro-o em todo o lado. Mas de tanta coisa que me explicou, nunca me explicou o que era viver um luto. Nunca me falou sobre a morte. Do seu Pai, que tanto gostava. Da sua Mãe, que adorava. Nunca me explicou esta condição crónica que é o luto. Da qual não se sai dela, nem se vive para além dela. Vive-se e aprende-se a viver com ela. E apesar dela.

Uma situação incurável. Esta de se viver cada dia, e em cada dia, confirmar que o sol nasce e que o Pai não está aqui. Apesar de eu o encontrar em todo o lado. Em tudo o Pai está. E de tudo o Pai já não está.

E isto é, afinal, o luto. 

Hoje fiz mousse de chocolate. A sua sobremesa preferida. Que comia com garfo. E quando terminei vi como ficou lindíssima, numa taça, com a luz do entardecer. E o Pai está aqui nesta mousse, neste sol melancólico de novembro, nesta luz mágica.

Hoje passei pelas barraquinhas da Ginjinha e das castanhas. E lá estava o Pai, e eu, a beber um copo de ginjinha, o Pai em copo de chocolate. E comíamos castanhas. E o Pai dizia que não havia nada melhor do que aquele copo de Ginjinha. E depois podíamos conversar sobre tudo, ou mesmo, sobre nada. 

Para o Pai era evidente, e tema recorrente, que a um mês do Natal o ser humano alterava-se. E tudo se tornava muito complicado. As pessoas andavam passadas. E o Pai tomava imensa atenção. Mesmo a conduzir. O Natal, no sentido pagão e consumista, era para si um mistério. A noite de Natal, já esse, sim, era o seu momento preferido. Almoços e presentes, era confuso. 

O Pai não me explicou como passar um Natal sem si. Não me disse como fazer. Consola-me saber que este não era, para si, um ponto alto do ano. Outros havia, e eu sei quais poderiam ser. 

Fui a Bruxelas ouvir o seu concerto preferido do Rachmaninoff. Foi o nosso Natal. Hoje fiz mousse de chocolate, mais um Natal. Fui andar junto ao mar, visitar a sua morada, outro Natal. 

Isto é o luto. A vida segue e o Pai segue comigo, na sua ausência. 

Cada dia não melhora. Só se confirma a vontade de estar consigo, só mais um dia. Porque tudo passou rápido de mais. Queria vê-lo, no Atelier, mais um dia e ir lá falar consigo. E os dois riamos sempre muito. E ter mais um abraço seu. 

Ah.

Queria só mais um dia. Mais um abraço seu. Os melhores abraços. Duravam muitos segundos e eram abraços apertados. E o Pai a chamar-me 'Mimi' e 'Mana', e todos os dias a dizer 'És tão bonita'.

Não o consigo tratar por tu. Não consigo perceber como viver sem si. Não consigo fazer mousse de chocolate sem chorar. 


Comentários

Leonor disse…
Que maravilha, querida Rita. Que maravilha! Eu acredito que o teu pai está a ler isto lá do céu e tu também, ou não lhe escreverias uma carta tão bonita. Sabes, esse abraço de que sentes falta, ainda vai ser, num piscar de olho lá no tempo de Deus, mas ainda vai ser.
Entretanto, escreve mulher, quem escreve assim não pode enfiar as mãos nos bolsos.
Um beijo grande da
Rosado

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