Se estivesses aqui



Fez por estes dias um ano que aconteceu o Estoril Open. Pois acontece todos os anos, sempre por esta altura. 

Deve vir escrito nos manuais (que não existem) sobre quem vive um luto, o clássico comportamento do 'há um ano'. Desde a partida do João, quase todos os dias, faço o exercício: 'há um ano'. 

Até ao dia em que uma pessoa morre, tudo passa a memória. A seguir, o presente deixa de existir. 

Então os enlutados gravam os dias do calendário, como ferros em brasa sobre a pele macia de um vitelo: o passeio no Guincho, o almoço do arroz de pato, o primeiro tratamento, a última operação, aquela consulta, a ida ao Estoril Open. É um ato de autoflagelo com consentimento do próprio. 

O João amava ténis - jogar e ver. Eu, só mesmo ver, e mesmo assim. Cresci no Clube de Ténis do Estoril, hoje Centro Congressos do Estoril, onde todos os fins de semana jogava-se a vida no court de terra batida. O João era craque, ganhava torneios, era federado, tinha um treinador. Por muitos natais, e dias de anos, recebia ora raquetes, ora mochilas de raquetes, ora latas de bolas de ténis. 

Cresci a cumprimentar a Maria Rosa, à entrada na secretaria, e a Ascenção no topo do balcão do Bar, onde eu não chegava, nem em bicos de pés. Com os meus Pais a jogar no court, e eu a um canto a fazer 'papas' de terra batida misturada com água. O Sr. Zé passava a rede e com a vassoura limpava as linhas. Regava os campos. Era tudo feito com atenção, tanto que consigo repetir os gestos. Claro que ficava zangado com as minhas construções de pó cor de laranja. Uma vez levei um gato que encontrei na rua para o balneário das senhoras, onde também fazia sabonetes sólidos, a partir do sabonete líquido das mãos. Eram horas e fins de semana infindos - eles jogavam, eu tinha de em entreter com alguma coisa.

Na sala da televisão, estava (quase) sempre o Jorge Fidalgo, a personagem mais bizarra. Nunca o vi a jogar, sequer equipado ou com uma raquete na mão. Estava sentado no sofá. Chamava-me Susana, de propósito, ou Luísa, e mandava-me ir buscar um Mars ao bar - e que trouxesse outro para mim. 

Parecia-me justo. A comida é uma excelente recompensa.

Cresci durante verões, que pareciam intermináveis, a ir para o Clube com o meu irmão, a ter aulas contrariada. Nos torneiros a ser apanha bolas, e ele juiz de linha - os lanches eram muito bons, com bolos e Sumol. 

Dezenas de vezes o João saia de casa para ir jogar -  apanhava o comboio até ao Estoril. Foi professor dos mais pequenos. Deu uma raquete ao Martim e muita paciência para jogar com ele.

Há um ano, o João tinha feito o 1º ciclo de tratamento e foi, quase de seguida, ver o ténis. Estava radiante. Trocamos mensagens. Um dia lindo, cheio de sol. Ele nas bancadas, bola vai, bola vem.

Se cá estivesse, eu já lhe teria enviado esta foto de um court no Brasil, construído com uma cobertura de madeira. Lindíssimo. Ele iria amar - a conjugação de duas das suas paixões, ténis e arte. 

Dizem que o tempo ajuda, e há uma altura, quando nos lembramos dos mortos, que só nos lembramos do bom. E isso consola. Ou já não magoa tanto. 

Por agora, o tempo só tem piorado. As saudades crescem, a ferra é auto infligida - faz uma cicatriz imensa. Para a vida. Se vivessemos para sempre, seria tudo muito mais fácil.  

Mas não há resolução, nem fecho de ciclo. Há um presente constante feito de ausência e de memórias (boas). É verdade, tive muita sorte. E vivo 'há um ano' como se ainda cá estivesses.  

Comentários

Natacha disse…
Que triste e tão bonito. E que bem que escreves, querida Rita. Os lutos dos vivos e dos mortos são sempre muito duros. Um abraço muito apertado 😍
Anónimo disse…
Beijinho Rita
Que bela descrição e estória que ia acompanhando palavra por palavra de cada canto do nosso antigo clube.

Ah! Já agora uma pequena insignificante correção. O Fidalgo que mencionas, que me deu umas raquetes, chamava-se Jorge. Jorge Fidalgo.

Para tua informação, demorei 5 anos primeiro que conseguisse entrar no Centro de Congressos do Estoril. Exemplos:
/ estou em cima do Court Central
/ estou em cima do #1, onde sentava em cima da minha MaxPlay enquanto meu irmão ia buscar uma bola 🎾 que tinha caído [mais uma vez] para o outro lado onde era um terreno descampado
Rita disse…
Obrigada pela correção : ) ainda faltou lembrar a sala de jogo, onde nenhuma criança se sabia ter entrado, ou sequer estado. Quando se abria a porta, só se via uma nuvem de fumo e um cheiro a cigarros horrível. Aquilo para mim era uma caverna misteriosa. O João tem uma foto do último jogo que fez no court central do antigo CTE - depois desse o clube fechou. Ele era o mais novo, devia ter uns 17/ 18 anos. A ver se a recupero, que ele me enviou. Foi uma época da nossa vida em que tivemos o privilegio de viver momentos ultra especiais, num lugar muito particular, e acho que sabíamos disso.

Mensagens populares