Amanheci

Hoje amanheci. Quando era pequena dizia "acordei-me".

Amanheci para uma vida, que é boa. Para uma noite tranquila, sem frio. Para o meu filho e o meu cão, que estão bem.

Amanheci para um arco-íris perfeito, de ponta a ponta. Para um coração vazio, que mirra por dentro. Para a demência do meu Pai, que aperta o meu coração. Para mim, que me procuro. 

Nunca tanto se falou sobre Ego - e a necessidade de não ser só Ego. Pois eu só leio e vejo Ego por toda a parte. As pessoas só falam sobre si, dão entrevistas sobre si, pensam sobre si, fotografam-se, olham-se e procuram reflexos sobre si. E eu aqui estou, a falar sobre mim. 

Hoje amanheci para o mistério que é a vida - parecendo até uma prosa bíblica, mas é tudo um mistério. E o meu Ego, aqui, neste pedaço de papel branco, é apenas, e só, sobre esse mistério. 

Para o mistério que eu sou. Que o meu filho é. Todos. Cada um. 

Esse amanhecer é Ego? 

É inquietação, talvez. 

Faz por esta altura um ano que terminei um ciclo de 10 anos de terapia - sempre com a mesma Psi. Foi uma despedida dura, mas para mim (lá está o "eu") já não fazia muito sentido. Como se já soubesse tudo, mas na verdade nada sei. 

O que disse na altura, e continuo a dizer, foi que ao fim desses 10 anos fiquei com uma caixa de ferramentas daquelas muito completa, há umas até com rodinhas, vários compartimentos, caixinhas, etc. Eu tenho uma dessas. Com ferramentas, parafusos e um bom Black&Decker. 

Ora, abrindo a minha caixa, uso uma chave inglesa e aperto mais um parafuso que se soltou. Escrevo este texto. Bebo um café, sem açúcar, e em jejum - descobri este prazer há pouco tempo. 

E é como o sol, que por minutos, lambe o chão da minha casa, aquece a madeira e ilumina o pelo preto do Flash, que se coloca estrategicamente para aproveitar essa passagem. Breve. Porque ele chega, mas passa, vai iluminar outras janelas, outros chãos, aquecer outro pelo de cão, ou de gato. 

Amanheço. 

Mas sei que passa.