A passada que marca a calçada


A passada que marca a calçada diz muito sobre quem dá os passos. O homem cansado, a mulher que trai, uma tristeza alheada, a esperança arejada. 

Perde-se tempo a cumprir tarefas que constroem um dia - o quotidiano. Não se dedica tempo a ver pessoas a caminhar na calçada. Ou mesmo a examinar como cada um põe um pé à frente do outro. Caminhar é a forma de afirmar que existo. Deitado, seja prostrado, ou em relaxe, é uma pausa na existência. Fazemos as coisas durar. Existir exige caminhar. Nos passos de cada um revelam-se os segredos, as conversas e as fantasias íntimas. Um grande assassino planeia o acto de matar a caminhar. Ele dá passos na calçada. Cada passo, uma facada.

Há também os que caminham para não pensar em nada. É útil. O esqueleto faz o movimento, o sangue circula, os pulmões enchem-se de ar. Não se tem de estar sempre a pensar, mas quase sempre pensamos. E quase sempre pensamos em coisas que não dizemos que pensamos. Neste mundo de culto da imagem, do ego e da auto estima - esquece-se que uma pessoa que caminha, e que sabe que caminha, é um sábio. A superficialidade deste mundo faz esquecer os "peregrinos", que não rumam a lugar nenhum, mas que respeitam o existir.

Anos inteiros a procurar o sentido da auto estima, o que me faz ser o que sou, quando já percebi que, afinal, é isso mesmo - ser. Se sou, tenho auto estima. E isso é como caminhar - a forma como dou os passos na calçada. Estou a ser eu. Nada mais.

Dos lutos que passei, um que ainda vivo, o da partida do meu Pai, outro do divórcio, a caminhada alterou-se. Invariavelmente, doíam-me as pernas e caminhar era como arrastar um peso. 

Há muito que não me apaixono, mas tenho a memória de uma caminhada invencível, capaz de enfrentar dragões e meliantes. 

A passada diz sobre o que nos habita, os pensamentos. Que não nos definem, mas marcam o passo. 

Siga. A vida pede o andar. 



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