É preciso falar dos mortos




Eu preciso de falar sobre os meus mortos.
Eu preciso de falar sobre o meu Pai e o meu irmão.

Eu preciso de me lembrar deles, de ouvir as músicas que eles ouviam, de ver os filmes preferidos, de ir comer ao lugar que eles gostavam.

Ao fim de 8 meses que o João partiu, sinto agora: afinal é isto um luto. 
O do meu Pai não o fiz, ou fi-lo enquanto reagia à doença do meu irmão, ou não. 
Agora, faço um luto 'pague 1 leve 2' com o 'extra' do Flash, o meu cão, amigo e quase filho durante 15 anos. 

2023 
1 de maio - Pai morre 
23 julho - deixamos as cinzas do Pai no mar
26 julho - Flash morre

2024 
1 julho - João morre 

Durante dois anos vivi em modo funcional - reagi a tudo o que a vida me dava. 
Tomei decisões, tratei dos assuntos, procurei aliviar o sofrimento dos outros, a tornar as coisas mais leves. 
Vivi doenças, hospitais, internamentos, tratamentos, exames. 
Vivi a dor de ver um Pai e um irmão doentes, e estive ao lado deles até ao fim. 
Decidi a eutanásia do Flash e estive ao lado dele até ao último suspiro. 

Sinto-me um soldado que voltou de uma guerra, andou dois anos enfiado nas trincheiras, puxou de todas as munições, artilharia pesada, numa luta constante. Lutei com tudo. A guerra acabou e eu voltei de mãos vazias. O soldado perdeu. Mas não foi tudo que se perdeu.

E porque têm de continuar os dias, e o sol levanta-se todos as manhãs e cada amanhecer não se repete - é preciso falar dos mortos. 
Do tempo em que eles estavam vivos. 
De lembrar o sabor do pesto que o João fazia, dos nossos mergulhos no Guincho ao final do dia, das mil voltas de bicicleta que demos juntos, da música que o João ouvia no quarto enquanto desenhava noites e noites seguidas - e montava os seus carros, aqueles kits super complexos, com latinhas de tinta. Encarnada. Sempre o vermelho (tal como ele dizia, o encarnado não é nome de cor)
Sempre a Ferrari.
O João dizia que era uma pessoa com gostos simples (e era). 
Certo dia eu perguntei: 'Então, e a Ferrari?'
'Isso era uma fraqueza', respondeu-me a rir.

Onde estava o meu Pai e o João havia sempre música. 
Ao fim de 8 meses que o João partiu, sinto agora: afinal é isto um luto. 
É escolher ouvir este Álbum dos Supertramp (Breakfast in America) de fio a pavio, várias vezes, muito alto e chorar e rir, e chorar e rir. 
Perdi-os, mas tenho aqui coisas comigo que quero entregar e deixar aos outros que se seguem. 
O Martim e a Beatriz.
Mas quero continuar por mim também - porque preciso dessas coisas, porque a essência do meu Pai e do João continuam. E eu sou feita dessas coisas que me fazem sentir viva. 

É por isso preciso falar dos mortos para que continuem a viver. 

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