Um conto para o meu Pai
Hoje vai chover. De certeza.
Acordado, mas ainda deitado na cama, Quinho já se havia apercebido do calor durante a noite – hoje vai chover. A chuva iria cair em pedaços de água, tão grandes e tão fortes, que ao bater no chão seriam como pregos a enfiarem-se na terra. E o barulho será ensurdecedor. E depois, a trovoada vem rebentar no ar, como foguetes atómicos. E reza-se para que cada trovão não caia na cabeça de ninguém.
A luz da manhã acende-se como um interruptor e Quinho prepara-se para sair de casa. No céu já se estavam a formar gotas escuras no contorno de cada nuvem. Caminha até ao mercado para ir buscar o mata-bicho: pão e maçarocas. Pela estrada cruzam-se as bicicletas, os chapas, pessoas, cabras, sacos de mandioca e carvão empoleirados. Algumas crianças correm descalças.
Quinho olha para os pés – tinha umas chanatas novas de napa escura. Gosta de andar entre as pessoas, a sentir a movimentação da sua pequena vila junto à montanha. As mangas e os ananases estavam a chegar às bancas, as galinhas apertadas nas gaiolas e o cheiro do cabrito frito mistura-se no ar. Ao fundo, nos campos de arroz, as mulheres trabalham na verticalidade das suas costas, enterrando três fios de relva - o rebento do arroz.
A oficina do Quinho fica nas traseiras do mercado, junto às barracas de peças de automóveis, bicicletas e motas. Há ainda a barraca do salão das senhoras, a Boutique e o barbeiro.
Assim que chega sente o seu cheiro preferido: o do óleo e da gasolina. E sente o orgulho de ter a melhor, e única, oficina daquele lugar. Ali trabalham três mecânicos, a quem o Quinho deixa o pão e as maçarocas, mais a mulher da limpeza que enche os copos com água fresca e os papéis de carimbos. Quanto mais carimbados, melhores são os papéis.
Que tipo de limpeza havia naquele lugar? Uma camada de óleo poroso preenche o chão, subindo pelas paredes do escritório do Quinho - o mecânico chefe. Uma divisão escura, com uma secretária e uma cadeira, quatro pneus e pedaços de ferro velho. Pela oficina havia poças de água escura, de óleo ou de água misturada com óleo, ou ali talvez só existisse óleo em vez de água.
Cinco carros estavam por baixo de um longo telheiro encostado a um muro. Mais outros carros em pedaços, peças soltas, pareciam estar ali há muito tempo, teriam nascido ali, talvez já crescido debaixo
do chão de óleo. Quinho pensava que teria “regado” tão bem aquela terra que, tal como o
arroz, ela deu carros velhos, fez nascer montes de sucata, pneus usados, bocados de para-choques e guarda-lamas, num caos de cheiro e de cor que quanto
mais calor fazia, mais cheirava e mais negro ficava.
Havia um rádio sempre ligado a dar música e as notícias.
Como a chuva se aproximava, Quinho mandou resguardar um dos carros que estava a levar uma pintura nova. Foi para o barracão das sacas de carvão - ao fundo da rua. Depois, os homens começaram a sua rotina. Pegaram nas ferramentas, andaram para lá e para cá, num vaivém de chapa, borracha e óleo.
O calor começa a subir do chão e a descer do céu, a música e as vozes dos homens não se distinguem das ferramentas. Finalmente, a chuva cai e toda a paisagem se dilui. Na estrada continuam a ir e a vir pessoas. O vendedor das chinelas de borracha põe-se debaixo das chinelas. A chuva é tão pesada que não se consegue ouvir o rádio e para se falar é preciso gritar. Quinho bebeu mais um copo de água gelada. Resolveu adiar a sua ida a meio do dia à Mesquita e foi para o escritório rezar. Os homens fazem uma pausa, comem o pão e as maçarocas e depois dormem o resto que não tinham dormido nessa noite.
Quinho não se apercebeu de quanto tempo passou, nem quanta chuva caiu, nem quanto rezou. Sai do escritório e vê que a chuva tinha levado os carros. Sobravam coutos, peças e óleo. O muro e o telheiro estavam cobertos de preto. Os homens acordam - os carros tinham sido engolidos pela terra. Tinha acontecido uma magia, evidentemente, negra.
Chamaram o
curandeiro que também tem a barraca dos telemóveis. Talvez fosse caso de se chamar a
vidente. E dois gatos. Porque dois gatos conseguem perseguir os espíritos,
enquanto um distrai o outro investe e agarra-os pelas costas.
Os carros iriam aparecer. Era preciso encontrar o momento certo para que isso acontecesse. Foi um espírito, ou melhor, um espírito com alma de mecânico que ali entrou. Uma alma que tinha inveja do Quinho e queria ter a única, e melhor, oficina daquele lugar.
Foi então que apareceu a empregada dos copos de água e dos carimbos. E ela falou. Como estava a aprender a conduzir, foi ela que levou os carros para o barracão das sacas de carvão. Assim, não só a chuva não estragou os carros como aproveitou para limpar aquela sujidade e ainda praticar a sua condução. A empregada dos copos de água passou a ser, a partir desse dia, também condutora de viaturas. Quinho confirmou que conduzia bem e até piscava o carro no momento certo de piscar.
FIM
Este conto foi inspirado numa viagem que fiz ao Malawi, durante o ano em que vivi em Moçambique. Foi escrito pela primeira vez em 2013.
O meu Pai embarcou, em Lisboa, a caminho de Angola, no Paquete Quanza no dia 5 Fevereiro 1968, levou 17 dias até chegar a Luanda e daí seguiu para Bela Vista. Em plena Guerra colonial, era responsável pelas viaturas, entre grandes camiões e jipes, da sua Companhia. Era o chefe da oficina e dos mecânicos. Esta fotografia foi tirada no quartel da Bela Vista em 1968. Voltou a Portugal no dia 26 Abril 1970. Nesse outono conheceu a minha Mãe, em Lisboa. E casaram um ano depois em Dezembro de 1971.
No meu ano em Moçambique, entre 2010 e 2011, fizemos várias viagens, milhares de quilómetros, e tivemos de ir a algumas oficinas com o nosso carro - uma pickup Toyota Hillux, branca. Sempre que entrava numa dessas oficinas ficava fascinada com aquele caos e lembrava-me do meu Pai. As minhas idas às oficinas, e a sua paixão pelos carros e pela condução, que passou para mim, inspiraram-me.
Faz hoje um ano que o Xicá partiu. Nunca leu este conto. Penso nele todos os dias, e não é por isso que sinto menos saudades. Pelo contrário.
Comentários