um quadro novo


Era Primavera e havia um cheiro intenso a ar. Havia qualquer coisa de novo.
A casa era pequena, tinha duas janelas, apenas. O chão era velho e usado, tinha as marcas de outros pés que não eram os seus. Havia qualquer coisa de novo, de diferente.

Quando chegou, abriu as duas portadas e deixou que o sol iluminasse a sala ainda mais pequena do que a casa. Esquecera-se que na véspera tinha deixado maçãs e tangerinas em cima da mesa, ainda mais pequena do que a sala. Seria daí que lhe vinha aquele cheiro novo?
A tinta da sala era tão velha, que há muito deixara de ter cor e aquele quadro, da casa sempre igual, já tinha feito uma cama naquela parede gasta.
Aliás, estava a ficar sem cor... assim como a parede.

Sentou-se numa cadeira na cozinha e vasculhou a sua bolsa, à procura do caderno e dos lápis de cor. O que havia de novo ali? Intrigava-o aquela sensação.
As flores de plástico estavam iguais, não se lembrava de quando as tinha comprado.
Encontrou o caderno, abriu-o num gesto muito automático.
Depois ficou a olhar novamente para a sala.

O tampo da mesa estava gasto, num efeito mate que contrastava com o brilho do sol que se deitava em cima de si.
Agora tudo era luz.
Os tapetes velhos cobriam o fim da cor das paredes e punham o chão em paz da sua função. Mas havia um cheiro a novo.
O que seria?

Levantou-se e deu uma volta à mesa. Tocou com os lápis no tampo, a mesa pediu quadrados azuis e encarnados. Ele desenhou-os. Depois a parede falou que gostava de ter sido uma casa em Itália, na Toscania. Ele pintou-a. A mesa quis reflectir a cor do céu, e o chão a cor da terra.
E ele pintou.

Quando terminou, reparou que tinha feito um quadro. E era ali que estava o cheiro a novo - numa enorme jarra verde que saia da mesa e subia até ao tecto. Ele tinha de inclinar a cabeça para trás para ver o topo da jarra, e por isso desenhou-o na parede para não se esquecer do fim.
Fez uma moldura oval à volta do fim e sentou-se.

Afinal - pensou - tudo é novo, até mesmo o fim das coisas. Basta eu querer...

Aqueceu uma chávena de café com leite e bebeu-a de dedos sujos e calcados de tinta, deixando restos de cor na porcelana branca.

Nota: este quadro é da autoria do meu Pai!

Comentários

Anónimo disse…
Fiquei todo derretido quando li a tua prosa.Fiquei mesmo muito emocionado.Por várias razões , mas a principal é o facto de que fiquei a saber que alguém vibrou com um quadro feito por mim , eu que sou o chamado novíssimo pintor.Tenho tido momentos de duvida dado à minha ousadia em me ter metido na pintura.A pintura é um universo muito grande , eu acho que é tão grande como o mar todo do mundo.Este quadro é pintado em papel e as cores são de um tipo de lápis de cera que dá para pintar com pincel.A textura é mais ou menos como aguarela. O quadro levou mais ou menos umas 3-4 semanas a ser feito , já não me lembro.Mas sei perfeitamente que no dia em que o comecei eu estava cheio de vontade de pintar qualquer coisa mas não sabia o que havia de ser.Essa situação é um bocado frustrante.E foi então que me ocorreu fazer uma mesa , isto de princípio com lápis normal.E a mesa foi a tal linha que se começa a puxar e as coisas começam a aparecer.Tive uma grande inclinação para pôr na janela oval o topo do duomo da catedral de Florença que é muito alto , para dar a impressão de que eu estava num quinto andar num quarto esconço em Florença e no ultimo andar de um prédio muito antigo , mas não foi possível.Assim, ao estar a ver um livro de Paul Cezane vi uma casinha que me inspirou e dessa maneira o quarto esconço ficou a ser numa casa de campo.Estou muito emocionado.Muito contente.Não queiras saber a força que me deste com as tuas palavras.Muito obrigado.
Anónimo disse…
Temos pintor ! Alex
Rita disse…
querido Pai; quando aquilo que escrevemos cumpre a nossa intenção, essa é a maior recompensa que podemos ter. como tudo aquilo que se pinta, desenha, compõe...
o escritor tem de ter uma intenção na escrita, o pintor na pintura. quando quem está do outro lado corresponde, existindo uma comunicação, essa é, para mim, a maior prova de que aquilo que o artista cria é sempre para os outros, e nunca para si próprio.
mesmo que nunca exista o tão esperado reconhecimento, ou mesmo a fama...
é a nessa forma de comunicar que está a beleza de toda as formas de arte!
eu adorei este seu desenho, que nunca tinha visto. parabéns e continue a trabalhar. muito!
bjs mil
Anónimo disse…
É verdade que todas essas actividades são uma forma de comunicação.O problema aparece quando existe duvida de que a comunicação se faça.Quando parece que a obra acabada vai ficar conosco porque ninguém a quer partilhar.Nessa altura eu costumo pensar que não me importa nada de ficar com a obra pela qual tenho a maior estima.Mas como já disse eu sou um novíssimo pintor e como tal o que me é obrigatório é trabalhar, o que me dá muito prazer.Devo dizer que ainda me custa a querer que venha a ser um pintor.O que me apetece muito é rodear-me de muita pintura.Se isso é ser um pintor , pois seja.O que é que o Alex pensa disto tudo?
Anónimo disse…
Naquele dia em que parti em missão, fui reencontrar imagens conhecidas, e algumas, as mais recentes, ainda por descobrir. Tem graça teres reparado neste quadro, porque, daqueles que fui descobrir e acabei por guardar para mim, foi o que mais me intrigou.
Logo que o vi, aquele micro-cosmos no qual parecem viver um sem número de personagens saidos da imaginação de cada um, logo que assimilei as suas cores, os seus traços, a sua perspectiva frontal e crua, logo que reparei naquela janela para ainda mais mundos para além do que nos está mais próximo, sabia que estava a olhar para uma imagem especial.
E fiquei contente e orgulhoso porque foi o meu pai que a criou.
João
Anónimo disse…
Para mim, o que realmente me surpreendeu foi o facto de no dia em que iniciei este quadro não tinha qualquer ideia do que iria desenhar ou pintar e o que eu estava era com muita vontade de fazer qualquer coisa.Estar sentado em frente à tela ou ao papel sem saber o que fazer é chato.De qualquer modo, sinto-me muito orgulhoso e contente por ter dois filhos fazem parte do meu universo.Isso é para mim muito importante.

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