O triciclo


triciclo em material plástico
 
 
Quando recebeu a primeira bicicleta sem rodinhas, André chorou agarrado às pernas da Mãe.
Tinha 6 anos. Era tudo o que mais queria e tinha pedido. Não haveria razões para aquele choro.
Era uma "super" bicicleta: quadro azul metalizado, os raios das rodas em amarelo canário, os pneus grossos, um suporte para a garrafa de água, luzes à frente e atrás, autocolantes reflectores, buzina. Tudo.
Toda a rua iria querer dar uma volta na sua bicicleta. Todos os amigos iriam pedir uma bicicleta igual.
Como sempre, a Mãe tinha a regra do "não quero tralha cá em casa" e por cada coisa que entrava de "novo", uma "velha" tinha de sair. Dar brinquedos, roupas e tralhas aos meninos mais pobres, aos filhos mais novos dos amigos - tudo servia para evitar amontoar a "tralha" que a Mãe tanto detestava.
Mas o André adorava a "tralha" e muitas vezes escondia as coisas mais pequenas e que a Mãe já não teria cabeça para se lembrar; até ao dia em que se decretavam as "limpezas" e até a tralha "escondida" não tinha salvação possível.
A única excepção em vários anos da "fúria" da Mãe contra a tralha, foi com o triciclo.
O primeiro triciclo do André.
Em que mal sabia andar e já se sentava no triciclo, os pézinhos a marcar o ritmo para a frente e marcha atrás, no corredor da casa ou dentro do quarto, no parque ou no passeio.
O triciclo rapidamente deixou de lhe servir, mas André tinha-o sempre com ele, como se fosse um urso de peluche. Levava-o de férias, para a creche, para a praia, para a noite de Natal em casa da Avó, para as festas de anos.
Até à primeira bicicleta, com rodinhas, houve mais dois triciclos e tudo o que André pedia era que não lhe levassem o "primogénito". A Mãe lá negociava com o filho outras contrapartidas, de uma limpeza mais a fundo de tralhas, e André concordava.
Até que chegou o pior, e o melhor dia da sua vida. O dia em que recebeu a tão desejada bicicleta de crescido!
E André pensou, tão rapidamente quanto apreciou o aspecto futurista e espectacular da nova bicicleta, que tinha chegado o dia de se despedir do triciclo.
A Mãe perguntou se não teria gostado da bicicleta...
"Não é isso, Mãe. É o triciclo que se vai embora..."
 
Depois chegou o dia de ter uma bicicleta com mudanças, a seguir uma de BTT, antes de ter uma mota, ainda uma bicicleta de carbono, e depois outra mota e a carta de condução chegou aos 18 anos e o triciclo não saia da garagem.
André foi estudar para fora. Os Pais mudaram de casa.
Chegaram os homens das mudanças e começam a pegar em tudo o que apanhavam.
A Mãe mandou um email a perguntar o que fazer com as tralhas da garagem, e o triciclo.
Que desse tudo, incluindo o triciclo.
A Mãe assim fez.
Despachou todos os caixotes, mas o triciclo guardou-o para si.
Negociou consigo mesma permitir-se a ter aquela "tralha" - o pedaço de memória mais presente do seu filho que agora começava a pedalar para cada vez mais longe de si.
 


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