O caminho do ibo

O destino foi a Ilha do Ibo, o vértice no triângulo entre o continente e as Quirimbas. Mais uma vez temos de sair pelo Porto de Tandanhangue, tal como na nossa viagem à Ilha do Matemo.

Saímos a meio da manhã e o caminho começa com uma enorme circular que contorna a Baía de Pemba, como se fossemos uma faca a descolar um bolo da forma, fazendo um enorme circulo à sua volta. Contornando a Baía chegamos à sua outra ponta, de onde avistamos a cidade e daí seguimos viagem passando por mais umas quantas aldeias e povoações.
A minha colecção de embondeiros vai aumentando (tenho tentado fotografar tantos quanto posso) e a isso juntei a minha convicção de que estou apaixonada por embondeiros e “requiems”, tendo por isso levado o ipod para juntar a banda sonora ao caminho das árvores esculpidas.
Não estava errada – é a conjugação perfeita! Requiem de Mozart em África, no meio dos embondeiros, é mágico!


A povoação principal, antes de Tandanhangue é Quissanga, um outro porto carregado de pescadores, palhotas e cabras que andam pelo meio das estradas estreitas. Chegamos finalmente ao nosso porto, cumprimento o seu gigante embondeiro e lá ao fundo já nos aguarda o barco que desta vez nos leva até ao Ibo.

Fazemos a viagem que já nos é comum: passamos a Ilha de Fiona ou Ilha dos pescadores, começamos a contornar o mangal em direcção a sul e logo as cegonhas se ajeitam nos ramos com as folhas, que parecem de brincar, e um enorme pelicano cinzento estica o seu pescoço ainda vazio.

A chegada ao Ibo é o regresso a uma outra vida. Em 1761 a coroa portuguesa fundou a vila do Ibo e até 1929 aquele foi o porto principal e capital do governo provincial de Cabo Delgado.

Pela sua situação estratégica, o Ibo é um lugar que junta influências árabes, indianas e africanas.
Hoje, o Ibo conta com pouco mais do que 3.000 habitantes e as ruas da vila são agora restos de ruínas de tempos coloniais.

Entro em casas e pequenos palacetes, imaginando os passos das senhoras até aos jardins que se estendem em cima do mar. As salas de estar de enormes tectos, as janelas maiores que as paredes por onde o cheiro das magnólias entrava pelo entardecer. E tudo isto com a brisa quente que chega pelo Índico, os retalhos de velas que deslizam pelo canal e um pôr do sol que me faz sentir num outro mundo.
Estivemos cerca de três dias no Ibo, como se lá fosse importante contar os dias, caso contrário não sabemos se aquilo são dias sequer. É uma espécie de vivência esquecida – quando ponho o pé do Ibo faço-o pela memória de outrém. De alguém que já lá viveu e que de lá nunca quereria sair; e então, eu sou essa pessoa.

O meu corpo transporta alguém e desta vez senti-me uma mulher profundamente apaixonada pelo homem que tinha saído pelo mar há muitos, muitos dias, a caminho da Índia. E todos os dias ela espera-o no porto, conta as luas, observa as estrelas, vê os peixes que chegam, mói com o pilão a farinha de mandioca assim como os seus pensamentos e a sua angústia por ele que não chega. "Porque aqui o coração bate mais devagar... meu amor."


No Ibo, vivia-se o jejum do Ramadão, o que além das marés é uma outra condicionante do ritmo na Ilha. Fomos de barco até à outra ponta da ilha, e qual não foi o espanto quando foi o Capitão Campo que nos conduziu! Também ele estava no Ramadão, então não fumava nem bebia água e só iria quebrar o jejum depois do pôr do sol. Mas continua gago como um peixe papagaio e certeiro no mar, como um lobo velho.


Saímos do Ibo ao entardecer, vendo o pôr do sol no barco a chegar a Tandanhangue. Quando chegámos, estava tudo tão deserto e tão calmo, como se continuássemos naquela vivência paralela, num cenário que se põe em frente a nós. Não havia ninguém. Só os barcos na água mole, o embondeiro gigante que lá do alto abraçava aquele pedaço de ilusão e as garças que traziam a vida em silêncio.



Deixamos o porto e partimos de regresso a Pemba, de regresso a casa. Fizemos toda a estrada de noite, com muitos mochos e corujas a riscar os faróis do carro com os seus voos irregulares e dezenas de ratinhos do campo a atravessar a estrada, na continuação do seu caminho.

Eu continuo também no meu, a caminho do Ibo.

Comentários

Anónimo disse…
08/09/010 chegado do norte do país.

O que vale é que o Ibo não irá nunca sair donde está.Porque se algum dia isso acontecer , isto é , se por qualquer magia o Ibo desaparecesse, tu ficarias destruída tal qual como o Xano ficaria.Ainda bem que assim é.Temos de falar mais vezes.Parece que o teu (vosso?) discurso mudou.Estás a falar de outras coisas.O teu discurso tem outras ajudas.Nunca deixes de escrever acerca das realidades que vais conhecendo.
Anónimo disse…
Olá Rita,
É a primeira vez que aqui venho e fiquei muito entusiasmada com a leitura!
Gosto muito deste "diário" não só pela maneira como está escrito como também pela riqueza da experiência de vida.
Do que li, fica-me a certeza de que os animais são uma grande fonte de amor, harmonia e amizade.
Era bom que toda gente compreendesse isto!
Sou a prof. de ginástica da sua mãe e tia da Martinha :)
Vou voltar!
sonia disse…
viva rita!
tive o previlégio d viver e estudar n ibo, nos anos 50. meu pai era o professor de uma escola q parece não existir mais. já nessa altura existiam muitas ruinas e as estradas eram d terra batida. só havia um carro, q era o jipe do sr. gaspar. ibo e barcelona ( q comparação!!!!!), foram os dois únicos lugares q adorei viver. hoje estou n brasil. um abraço, sónia lavinas
Rita disse…
Olá Sónia, que bom ter consigo chegar até aí... é um dos bons prazeres da escrita, quando ela consegue provocar estes encontros. Moçambique - Brasil - Portugal. Continue por aqui, eu vou dando mais notícias do Ibo e quem sabe se não regressa cá um dia! Abraços

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