diários de moçambique**#7


Diário de Moçambique. Volume 2. "as raízes do princípio."
 
(a despedida)
 
19 de Julho de 2011 (3ªfeira)
Hoje iniciei a minha despedida. Só hoje.
Ou por outra, começou ontem, quando, no Ibo, resolvemos ir ver o pôr-do-sol. O "último" pôr-do-sol no Ibo.
Depois de tratar das coisas práticas da casa, vender as coisas todas, chegou o momento da "venda" da minha alma.
Quando começamos este movimento da partida, tudo à nossa volta encaixou-se e foi-se encaixando perfeitamente - pareciam como peças de um íman que se iam arrumando automaticamente num tabuleiro. E eu observo como tudo se compõe.
No Ibo não foi excepção!
Tudo foi andando como um barco que desliza, compacto, inteiro em si mesmo.

20 de Julho de 2011 (4ªfeira)
Agora a despedida são fronhas - andamos a transformar todas as capulanas das nossas duas casas (Pemba e Ibo) em capas de almofadas. Fronhas.
As que não havia cá em casa fomos comprar às Batatas***.
Na "Alfaiataria da Moda", ao lado do KK, fomos atendidos por um Sr. indiano, muito reservado, mas determinado, que por 50 meticais transforma capulanas em "sonhos", em noites...
Temos as malas praticamente fechadas, o carro foi hoje vendido. (...)
As estranhas despedidas e os restos que vamos deixando; roupas, livros, cadernos, filmes, sapatos, tralha.  Sempre tudo tão descartável. Só o que vai aqui dentro, não dá para aliviar o "peso".
A despedida, hoje, é exactamente 1 ano depois de ter dormido pela primeira vez nesta casa, tal é a força da vida que "arruma" tudo no seu lugar, sem que eu alguma vez pudesse ter alguma influência sobre isso.
Nunca vivi num outro País sem ser Portugal, nunca tive uma outra casa - esta foi a primeira vez. A minha primeira vida fora de uma outra.
Porque África é uma outra vida - mas eu sinto que, na verdade, eu não me despeço dela, apenas a continuo de longe.
Aqui tive uma outra vida, um outro mundo que não estranho, que já faz parte de mim: os embondeiros, o pôr-do-sol, os pássaros agitados, as mangueiras e os cajueiros, os vendedores de rua, de ovos cozidos, de fruta e maçarocas, pepinos e tomate, os bebés nos cestos e nos baldes e as trouxas na cabeça, a padaria e as barracas de rua, as cabras na estrada e os cães miseráveis e magros, as motas brulhentas, as bicicletas flutuantes, os pés descalços, as crianças aos molhos, as osgas, os mosquitos e os caranguejos, as baleias ao longe, os golfinhos e os corvos de babete branco, o barco chapa, o Ibo, os pássaros do Ibo, os sons do Ibo e as crianças do Ibo sempre a chorar, o pôr-do-sol do Ibo, as cegonhas no mangal, os barcos dhows sem pressa, a rotação da terra em câmara lenta, a estrada e a terra batida, o pó, as unhas sempre sujas, o calor colado à pele, o frio nos ossos, a música aos gritos nos mercados, os homens dos mercados, os alfaiates, as mulheres do caju e do amendoim na praia, os pescadores de linha e anzol, as crianças na beira da estrada sempre a acenar, a xima e a matapa, o peixe frito e tudo frito, a coca cola mundial e a ausência de açúcar  na vida, o ritmo lento de cada um, as barracas tão bem pintadas, os montinhos bem arrumados de lenha, carvão e limões, os saquinhos de piri-piri, caju ou amendoim pendurados nos troncos, a febre do telemóvel, o Banco a abarrotar de gente, a linguagem fácil e a calma do caos, a natureza selvagem e forte, os galos pendurados nos guiadores das bicicletas, as cabras amarradas no topo dos carros e o dia que acaba no segundo em que a noite chega.

22 de Julho de 2011 (6ªfeira)
Estou no Aeroporto de Pemba onde acabamos de chegar, depois de termos fechado a casa. Demos tudo ao Jorge (guarda) que foi lá buscar o que tinhamos comprado cá (talheres, pratos, copos, baldes, panelas, frigideiras, canecas, baldes e esfregona...). Ficaram as duas mesas, quatro cadeiras, uma cama e um colchão.
A sensação de fechar a porta foi um alívio.

11 de Agosto de 2011
(5ªfeira)
Cá estou, mais uma vez, dentro do avião a caminho de Portugal. Desta vez não é para voltar. Desta vez é para ficar e pensar. E reflectir e prioritizar as vontades, os desejos e as necessidades.
Tudo fica bem, quando acaba bem. E foi verdade.
O nosso ano em Moçambique acabou bem, apesar das frustrações, das discussões, das tristezas...
(...)
O que não nos mata, fortalece-nos. E assim foi.
Aprendi a gerir melhor as minhas fraquezas, a acreditar que "pode sempre dar", a ser mais cautelosa e menos ingénua, a olhar melhor para os outros, a ponderar com calma os factos que nos apresentam como graves, porque podem ser sempre menos graves, a ouvir mais os outros, a acreditar mais em mim, a respeitar a natureza das coisas em primeiro lugar e a Natureza sempre, a saber amar e perdoar, a saber pensar e "dormir sobre o assunto".
Não há pressa. Foi o homem que criou a pressaa e o conceito de tempo. O tempo é coisa que não existe na natureza, os animais sentem o nascer do dia e o pôr-do-sol como momentos de luz e escuridão e entre uma coisa e outra a vida corre. Um dia de cada vez.
Aprendi a ouvir-me, a respeitar-me, a conversar comigo a respirar fundo.
Nada é para sempre. Um dia começa com um minuto e termina em 24 horas, são passos que vamos dando.
Nada é eterno.
 
**excertos do meu Diário Pessoal escrito durante a minha estadia em Moçambique, entre Julho de 2010 e Agosto de 2011
***mercado de Rua em Pemba

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