A Casa do meu Avô


Há mais ou menos um ano escrevi um texto sobre a casa do meu Avô materno (sobre quem eu já falei bastante aqui no Blog, nomeadamente quando estava no Ibo e ele morreu) . Um primo tinha passado à porta, e enviado a foto para um grupo de família – era uma foto de um buraco, com um camião TIR lá dentro a tirar entulho.
A casa do meu Avô, em Lisboa, foi vendida e irá transformar-se num prédio de 6 andares, por ai.
Na altura, quando vi a tal foto partilhada pelo WhatsApp, escrevi este texto de rajada, publiquei-o no Facebook e pela primeira vez na vida senti na pele o que é ser-se a “ovelha negra”. Com excepção dos meus Pais e irmão, que gostaram, o resto da família censurou a minha narrativa.
E eu retirei o texto e perdi a foto. Agora, já pode respirar novamente. O texto e eu.
Aqui vai:
 

A Casa do meu Avô.

A Casa do meu Avô fica no número 159 da Avenida Miguel Bombarda, em Lisboa. Antes de se chegar à porta, tem um portão de ferro, que está sempre meio aberto. A Porta é enorme, e tem uma janelinha, também grande, que diz “Cartas”; é por onde eu espreito, sempre a ver quem é que vem à porta.

Logo na entrada, à direita, há um banco corrido que no Natal se transforma numa montanha de casacos e cachecóis. As escadas, de acesso ao enorme hall que serve o andar do rés-do-chão, salas e cozinha, são degraus em alcatifa. Uns seis. Largos e generosos.

Nesse Hall há uma mesa grande, com um grande candeeiro, que enquadra um gigante vão de escadas. Há um sofá em meia-lua, cor de laranja, e por cima dele, um sol (espelho) em talha dourada. Olho as escadas, num zigue-zague perfeito para o 1º andar – um corrimão, lindo em madeira bojuda. Foi por esse corrimão que desci centenas de vezes, fazendo-o de escorrega, até ao dia em que me espetei a direito na tal mesa do candeeiro. Estavam lá umas Tias e meteram-me gelo na testa. Antes de subir as escadas, vejo as três portas: uma em frente, para a sala de estar, uma à esquerda para a cozinha e outra á direita para a sala de jantar. A controlar o tráfego mundano está posta, no alto da parede, uma Sta. Rita. Silenciosa e observadora. É o meu nome, e o nome da minha Mãe – devo ter atenção aos meus passos.

Se entro para a cozinha há uma copa de mesa posta para nós: os netos do Avô. Há armários em cima, com pilhas de latas de bolachas; uma delas é a lata das melhores bolachas, uma lata quadrada, com flores. Não há bolachas como as bolachas em casa do meu Avô.

Na cozinha há sempre um pão-de-ló à minha espera – há formas de bolos e farinha na balança. Há outra parte da cozinha, já junto ao jardim. Está lá Gin, o pastor alemão da minha Tia Joana. Saio para o pátio. Há pouca luz, a sombra dos prédios à volta escurece o meu brincar, mas fico até a luz se ir. Do outro lado, está o jardim da sala – separado por uma vedação e uma porta. Volto à Sta. Rita, observadora, e subo ao primeiro andar.

Lá em cima são os quartos, e está o quarto dos meus Avós, enorme, com um quarto de vestir estrondoso. Os armários do quarto de vestir são de madeira, têm vidrinhos de espelhos nas portas. Um L perfeito de armários, todos com espelhos. Olho o meu reflexo nos vidrinhos do armário – tenho os joelhos todos esfolados, o cabelo crespo, sou meia grande, meia miúda. Desajeitada sem saber do quê. Há um toucador, um sofá verde clarinho em veludo, encaixado num nicho, dentro da parece. Há as caixas de chapéus da minha Avó. As joias, as escovas de cabelo, o perfume Rive Gauche, os frascos, o cheiro a pó de talco e as maquilhagens. E a casa de banho, em mármore verde. No espelho experimento os batons vermelhos da minha Avó. Aquela casa de banho fascina-me.

Avanço para a salinha da Titá. Temos sempre de ir dar um beijinho à Titá – “…a Titá é que foi a minha Mãe”, dizia-me a minha Mãe. A Titá tem bigode e pica muito quando ela me dá um beijinho. Está lá sempre sentadinha a costurar às escuras. Num espaço contíguo estão as espingardas do meu Avó, as canas de pesca e os anzois. Os patos de borracha e as botas de ir à caça. São os armários de caça do Avô. Tudo impecavelmente arrumado e limpo.

Antes de subir ao sótão há um outro ser inerte, que me espera. O veado. O veado de olhos vítreos e hastes perfeitas. Posto na parede, a olhar em frente. Eu olho sempre muito para ele – a ver se ele mexe os olhos e me vê. Talvez ele me visse e mexesse os olhos. Eu assim teria a certeza das minhas capacidades telepáticas em comunicar com animais, além de os ressuscitar.

Lá em cima, os meus primos, quase tudo rapazes, jogam jogos e apostam-se resultados com os ganhos em malteasers. Nada acontece em casa do Avô sem um pacote de malteasers.

Desço, vou à sala. Está lá aquela senhora, de olhos cor de mistério, deitada num sofá comprido, de veludo verde-escuro. Tem umas mãos de cera, unhas pintadas de encarnado. Pele de porcelana e uma voz que eu não entendo. Porque tenho eu o cabelo tão crespo. Porque sou tão grande. Porque calço tanto e visto-me tão mal.

Eu só quero o meu Avô. Só quero sentar-me ao lado dele, na outra ponta do sofá, e que passe horas a coçar-me as costas. Quero ir brincar com as canetas e os papéis da sua escrevaninha. Que me deixe brincar com as fichas de bridge da Avó. Me chame “Ritinha do Bô”, me leve à Esquina a comer uma sombrinha de chocolate, a passear de carro e a apitar nos túneis em Lisboa, a dar pão aos patos da Gulbenkian.

Atravesso para a salinha da televisão e fujo para o jardim. O jardim da árvore gigante, onde o meu Avô pôs uma casinha para os pássaros fazerem ninho, e onde mandou fazer um lago para meter peixinhos cor de laranja a nadar. Dali vejo através das enormes janelas de vidro o interior da sala. Falam todos muito alto, dizem muitas coisas. Sempre preferi ficar a olhar, ouvindo no silêncio que a casa transpirava, todos os ecos da história de uma família, que afinal é a minha.

Nota: Tanto a Sta. Rita como o veado vieram para minha casa. Ainda testo capacidades telepáticas com o veado e apraz-me a companhia da minha homónima, todas as noites, na minha sala. A lata de bolachas às flores, quadrada, está em casa da minha Mãe.

    

 

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