Surto Mensal de Malária - Moçambique

(Reencontrei este texto que me tinha esquecido escrever. Tanta coisa que eu escrevo e esqueço. E como gostei de os reencontrar, ao Gonçalo, e ao texto)

 
Tudo se transforma quando o tempo não ocupa os ponteiros de um relógio.
Em Moçambique não há tempo. Há momentos. O momento de apanhar o caranguejo no mangal, de moer a mandioca no pilão, de esperar o pão cozer, de atravessar o Zambeze, de subir uma montanha no Gurué, de mergulhar nas Quirimbas e ver os peixes papagaio, de molhar os pés no Lago Niassa, de sofrer com o calor, de ser picado pelos mosquitos, de dormir no chão do alpendre.
E ainda há o momento de perder a noção do tempo.
Os relógios vivem pendurados nos embondeiros, tal como o quadro, persistindo na memória. Moçambique é, para mim, uma memória. Deixei-a no topo daquele embondeiro, na aldeia junto ao mar, com meia dúzia de casas, de onde apanhava o barco que me levava até à Ilha do Ibo.
Ainda tenho a memória carregada do pó alaranjado da estrada que me levava até à aldeia. O barco, que todos os dias sai até ao Ibo, não tem um horário - ele sai quando a maré está no momento de deixar os barcos sair. O momento prolongava-se, esticando-se no embondeiro que espreitava as manobras e as partidas e chegadas dos passageiros. Eu tentava chegar nesse momento e, usando uma tabela de marés, tentava criar um “horário”. Nunca perdi um barco.
Os lugares e as pessoas continuam lá.
As costeletas de cabrito vendidas à beira da estrada, as peneiras cheias de farinha de mandioca, as tijelas de cajus, as três mangas a um metical, as capulanas bamboleantes, os filhos pendurados nas costas das mulheres, as bicicletas com as galinhas penduradas no guiador, o pôr-do-sol na Baía de Pemba, as casas perdidas na Ilha de Moçambique, as baleias em festim, as cabras presas nos tejadilhos dos carros, a luz e o cheiro da Ilha do Ibo, um lugar no meio do Índico.
Eu continuo cá.
No meio existe uma qualquer dimensão que eu entendo como o tempo “vazio” das horas e dos minutos, que me parece só existir em África e em mais nenhum outro lugar da terra.
Eu não vivi um ano em Moçambique, eu passei um momento em Moçambique.
E é isso que marca os meus dias, como um ponteiro dos segundos, certeiro e infalível.

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