Todas as manhãs, pelas mesmas horas, um gato preto passeia-se nos terraços das traseiras do meu prédio. Como tenho registado, em fotografia, sei que calha quase sempre às mesmas horas. Passa sempre pelos mesmos sítios, cheira sempre as mesmas coisas, e aventura-se pelos telhados. Há conversas breves com uma gaivota que aparece de vez em quando.
O gato é constante em todas as manhãs. É um gato meio vadio, acolhido pela Biblioteca Municipal (edifício rosa), onde me parece que lhe dão comida e algum teto. Mas é um gato da rua. E mesmo sendo um gato errante, a sua permanência é constante. E isso é incrível.
Meio bicho selvagem, meio amestrado, gosta da consistência. Faz todos os dias, quase sempre, os mesmos percursos. E pelo meio-dia desaparece. Nunca volta. Só no dia seguinte.
Como sempre gostei de observar a natureza, seja em estado mais ou menos selvagem, acredito que nela está a resposta para quase tudo. A estoicidade do gato preto desconcerta-me. Ele não tem relógio, nem tarefas a cumprir. Está a ser um gato vadio, que na sua liberdade e independência, procura a constância.
Isso é belo. Ele não o faz por nada. Só por ele mesmo.
No dia 22 de novembro de 1933, o meu Bisavô abria o Hotel Aviz em Lisboa. O último hóspede saiu no dia 30 abril de 1961. Em 1962 o edifício foi demolido, que hoje é onde está o Hotel Sheraton, na Av. Fontes Pereira de Melo, em Lisboa.
Morreu com 55 anos, e numa vida relativamente curta, teve uma consequência de conquistas e realizações, fracassos e até casos de polícia.
A história do gato preto juntou-se com a passagem de ano, em que estive entre primos, e onde usamos os talheres do Hotel. Se os talheres falassem, por que mãos terão andando? E bebemos a 'ponche', receita de uma Tia americana, com quem um dos filhos do Joseph casou - conheceu-a no bar do Hotel.
Eu só estou aqui porque o meu Bisavô, na passagem por Lisboa, apaixonou-se pela Maria Albertina e daí nasceu a minha Avó. Senão, teria seguido viagem para a Argentina.
A permanência dos que já cá não estão fica em tudo o que tocamos e nas histórias que contamos. Há fotografias, e até acredito haver espíritos que habitam lugares. Há brisas que sopram, há energia que corre. Todos os dias, assim como o gato, o sopro dos que já cá não estão é constante. A permanência do meu Pai está provada.
Na 'ponche' que eu o via beber em tantas noites de Natal. Na minha Tia que o chamava para trinchar o perú - como só o Xicá sabia fazer. Mas agora somos nós. Os bisnetos. Que repetimos os gestos. E precisamos de o fazer e acreditar.
E fazemos porque tem de ser.
Por nada, por nós mesmos.
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