Diarios II
IBO
Tenho chegado à conclusão de que todo o homem é ansioso de rotina. Até mesmo os bichos. Pelo Ibo vamos encontrando a pouco e pouco a nossa rotina – o nosso ritual do dia-a-dia, que de alguma forma nos define, nos identifica.
Antes de começar a escrever essa nova vida que nos trouxe até aqui, em Julho, numa primeira fase em Pemba, explico que pelo meu computador e por mim viajam tantos curiosos seres, também eles a caminho das suas rotinas. Uma aranha minúscula instala-se na minha mão direita e vai teclando as letras comigo, bicharocos atravessam o computador num ritmo apressado, as lagartixas cumprem auto-estradas na relva à minha frente; quando tiver oportunidade ponho aqui uma foto de “onde é que eu escrevo”.
Aqui o dia começa às 4h00. Está a Vénus firme no céu lilás líquido, há as sombras dos coqueiros e das papaieiras do nosso jardim, e o Sahid, o nosso guarda muçulmano, de cócoras, a rezar. Começam os barulhos do costume – mas aqui os pássaros são muito mais criativos. Dizem que o Ibo tem uma variedade de pássaros muito acima da média e é possivelmente um dos melhores locais de observação nas Quirimbas. No nosso jardim, o coração desta casa, há ninhos de tecelões, que fazem uns novelos de palha perfeitos, e cantam maravilhosamente bem, de penas amarelas muito inchadas.
O sol surge como se fosse um interruptor e começa o calor. O calor preenche tudo e o quarto começa a ficar quente. As pessoas passam na nossa rua, falam, falam, sempre em kimani – o dialecto da ilha – as crianças choram e continuam a chorar durante todo o dia. Muito choram estas crianças – mas também, é porque há muitas crianças. Mais de metade da população do Ibo tem menos de 14 anos, e a esperança de vida é 38 anos… Mas o Ibo é um lugar mágico, em que de noite as estrelas preenchem os nossos olhos e de dia há uma agitação sentida, como se a terra fervilhasse.
Há barcos-chapa a sair para o continente, há outros a chegar, carregados de mandioca, carvão, motas, sacas de açúcar e de farinha, galinhas, mangas, e até um pudim numa forma dentro de um saco de plástico.
No Ibo há tanta vida, que é difícil de imaginar que numa ilha com 4 mil habitantes exista tanto movimento: mulheres que fazem colares e flores a partir da folha seca de mangueira, num processo trabalhoso e elaborado (já tenho uma lição marcada com a D. Manassa para aprender como se faz); um atelier de costura com camisas, calções, saias e vestidos feitos a partir de capulanas, em cores magnificas e com um acabamento muito bem feito, com um cunho muito personalizado (já encomendei uns calções ao alfaiate); ourives e artistas do pau preto; oficina de carpintaria; associações de mulheres pescadoras de polvo …
A nossa rotina ainda não se instalou totalmente, por culpa de um miserável frigorífico a gás. Demorou 2 dias a chegar aqui, por barco, desde Pemba, em que o Xano também embarcou nessa aventura, entre pescadores e marinheiros, visitas de golfinhos, mar azul-turquesa, frio, fome, sede e cansaço, discussões entre brancos e pretos e duas noites de céu negro, sem sinal de lua. Já o ligamos durante toda a noite e está lá tanto frio como está aqui fora.
Introduzo vários temas ao mesmo tempo, mas o calor é tanto que o simples facto de me ter posto cheia de iniciativa a passar cera líquida na mesa e no armário (louceiro) do nosso alpendre, fez descer desde o pescoço até à cintura uma película de mil gotas de suor que me encharcou em minutos o corpo todo. Ainda aqui sentadinha, só a mexer os dedinhos e pouco mais, sinto-me a derreter aos bocadinhos.
Tenho sempre as unhas sujas. Isso é outra coisa que aqui se passa constantemente, apesar de as ter sempre curtas e arranjadas, ficam logo cheias de sujidade. Parece que ando com as mãos dentro de baldes de terra.
Além do frigorífico morno, ainda faltam algumas pequenas coisas cá em casa, mas já está tudo mais ou menos. O menos talvez sejam os outros bichos (ratos) que cá andam com renda vitalícia e não há meio de acabar com eles – já devemos ter posto 1 quilo de granulado/ veneno, mas mesmo assim ouvimo-los durante a noite. Vamos mudar de quarto, passando de uma sauna nível 3 para uma de nível 1, onde mesmo assim o Xano dorme como se estivesse dentro do tal frigorifico que não existe. Dizem que a Ilha tem bastantes e nós já estamos em lista de espera para ter uma gata – os gatos dormem e comem o dia todo, as gatas caçam. Será uma coisa inédita nesta família, começamos pelo gato antes do cão. Sendo que, obviamente, temos de retirar todo o veneno quando a “caçadora” entrar no lar. Ela já nasceu, mas ainda é muito pequenina (1 mês). Não sei que nome lhe dou…
Também já temos a Rabina, uma rapariga de 27 anos que é a nossa empregada – fala bem português, sendo que o “bem” é um articular de duas ou três palavras. Faz tudo o que as máquinas no mundo ocidental fazem: lava roupa, loiça e aspira, além das limpezas.
Ontem resolvi fazer o nosso presépio, já que árvore de Natal é qualquer coisa muito longe disto. São as três figuras em pau-preto, pus umas folhas verdes em baixo e uma flor em cima, como se fosse a estrela de Belém. Fiquei toda contente a ver o nosso “Natal” no Ibo. Quando tiver uma ligação à internet em Pemba, vou tentar pôr fotos.
Quis fazer o presépio para me lembrar dessa rotina em Lisboa, fazendo um contraste tão grande com a memória do frio lá fora, as roupas quentes e o aquecimento ligado, as ruas cheias de gente e de carros, chuva, as famosas compras de Natal, a correria do Dezembro até ao final do ano.
A Rabina, sempre descalça, estende a roupa na corda, hoje reguei o jardim e acho que vou pôr uma flor fresca no nosso presépio.
Tenho chegado à conclusão de que todo o homem é ansioso de rotina. Até mesmo os bichos. Pelo Ibo vamos encontrando a pouco e pouco a nossa rotina – o nosso ritual do dia-a-dia, que de alguma forma nos define, nos identifica.
Antes de começar a escrever essa nova vida que nos trouxe até aqui, em Julho, numa primeira fase em Pemba, explico que pelo meu computador e por mim viajam tantos curiosos seres, também eles a caminho das suas rotinas. Uma aranha minúscula instala-se na minha mão direita e vai teclando as letras comigo, bicharocos atravessam o computador num ritmo apressado, as lagartixas cumprem auto-estradas na relva à minha frente; quando tiver oportunidade ponho aqui uma foto de “onde é que eu escrevo”.
Aqui o dia começa às 4h00. Está a Vénus firme no céu lilás líquido, há as sombras dos coqueiros e das papaieiras do nosso jardim, e o Sahid, o nosso guarda muçulmano, de cócoras, a rezar. Começam os barulhos do costume – mas aqui os pássaros são muito mais criativos. Dizem que o Ibo tem uma variedade de pássaros muito acima da média e é possivelmente um dos melhores locais de observação nas Quirimbas. No nosso jardim, o coração desta casa, há ninhos de tecelões, que fazem uns novelos de palha perfeitos, e cantam maravilhosamente bem, de penas amarelas muito inchadas.
O sol surge como se fosse um interruptor e começa o calor. O calor preenche tudo e o quarto começa a ficar quente. As pessoas passam na nossa rua, falam, falam, sempre em kimani – o dialecto da ilha – as crianças choram e continuam a chorar durante todo o dia. Muito choram estas crianças – mas também, é porque há muitas crianças. Mais de metade da população do Ibo tem menos de 14 anos, e a esperança de vida é 38 anos… Mas o Ibo é um lugar mágico, em que de noite as estrelas preenchem os nossos olhos e de dia há uma agitação sentida, como se a terra fervilhasse.
Há barcos-chapa a sair para o continente, há outros a chegar, carregados de mandioca, carvão, motas, sacas de açúcar e de farinha, galinhas, mangas, e até um pudim numa forma dentro de um saco de plástico.
No Ibo há tanta vida, que é difícil de imaginar que numa ilha com 4 mil habitantes exista tanto movimento: mulheres que fazem colares e flores a partir da folha seca de mangueira, num processo trabalhoso e elaborado (já tenho uma lição marcada com a D. Manassa para aprender como se faz); um atelier de costura com camisas, calções, saias e vestidos feitos a partir de capulanas, em cores magnificas e com um acabamento muito bem feito, com um cunho muito personalizado (já encomendei uns calções ao alfaiate); ourives e artistas do pau preto; oficina de carpintaria; associações de mulheres pescadoras de polvo …
A nossa rotina ainda não se instalou totalmente, por culpa de um miserável frigorífico a gás. Demorou 2 dias a chegar aqui, por barco, desde Pemba, em que o Xano também embarcou nessa aventura, entre pescadores e marinheiros, visitas de golfinhos, mar azul-turquesa, frio, fome, sede e cansaço, discussões entre brancos e pretos e duas noites de céu negro, sem sinal de lua. Já o ligamos durante toda a noite e está lá tanto frio como está aqui fora.
Introduzo vários temas ao mesmo tempo, mas o calor é tanto que o simples facto de me ter posto cheia de iniciativa a passar cera líquida na mesa e no armário (louceiro) do nosso alpendre, fez descer desde o pescoço até à cintura uma película de mil gotas de suor que me encharcou em minutos o corpo todo. Ainda aqui sentadinha, só a mexer os dedinhos e pouco mais, sinto-me a derreter aos bocadinhos.
Tenho sempre as unhas sujas. Isso é outra coisa que aqui se passa constantemente, apesar de as ter sempre curtas e arranjadas, ficam logo cheias de sujidade. Parece que ando com as mãos dentro de baldes de terra.
Além do frigorífico morno, ainda faltam algumas pequenas coisas cá em casa, mas já está tudo mais ou menos. O menos talvez sejam os outros bichos (ratos) que cá andam com renda vitalícia e não há meio de acabar com eles – já devemos ter posto 1 quilo de granulado/ veneno, mas mesmo assim ouvimo-los durante a noite. Vamos mudar de quarto, passando de uma sauna nível 3 para uma de nível 1, onde mesmo assim o Xano dorme como se estivesse dentro do tal frigorifico que não existe. Dizem que a Ilha tem bastantes e nós já estamos em lista de espera para ter uma gata – os gatos dormem e comem o dia todo, as gatas caçam. Será uma coisa inédita nesta família, começamos pelo gato antes do cão. Sendo que, obviamente, temos de retirar todo o veneno quando a “caçadora” entrar no lar. Ela já nasceu, mas ainda é muito pequenina (1 mês). Não sei que nome lhe dou…
Também já temos a Rabina, uma rapariga de 27 anos que é a nossa empregada – fala bem português, sendo que o “bem” é um articular de duas ou três palavras. Faz tudo o que as máquinas no mundo ocidental fazem: lava roupa, loiça e aspira, além das limpezas.
Ontem resolvi fazer o nosso presépio, já que árvore de Natal é qualquer coisa muito longe disto. São as três figuras em pau-preto, pus umas folhas verdes em baixo e uma flor em cima, como se fosse a estrela de Belém. Fiquei toda contente a ver o nosso “Natal” no Ibo. Quando tiver uma ligação à internet em Pemba, vou tentar pôr fotos.
Quis fazer o presépio para me lembrar dessa rotina em Lisboa, fazendo um contraste tão grande com a memória do frio lá fora, as roupas quentes e o aquecimento ligado, as ruas cheias de gente e de carros, chuva, as famosas compras de Natal, a correria do Dezembro até ao final do ano.
A Rabina, sempre descalça, estende a roupa na corda, hoje reguei o jardim e acho que vou pôr uma flor fresca no nosso presépio.
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