diários de moçambique** #4

Diário de Moçambique. Volume 1. "do que te leva a ir..."

30 de Novembro de 2010. (3ªfeira)
 

(Esta entrada no meu Diário merece uma explicação prévia para se entender o seu contexto. O meu marido partia nessa madrugada para uma viagem de barco Pemba - Ilha do Ibo que supostamente duraria 8 a 10 horas. Como nesse dia o vento mudou, demorou 52 horas. Eu fiquei quase duas noites a dormir sozinha no Ibo e ele num barco no meio do Índico... Ele finalmente chegou na segunda noite às 3 da manhã.)

Meu Amor,

Como vais tu dormir esta noite? Onde? Debaixo das estrelas, no meio do mar, do Oceano.

Passei todo, todo o dia a pensar em ti. E ainda agora, que o sol se foi e anoite chega, não paro de te imaginar. Vou-te contar como correu, depois de te ter deixado no Paquite às 2h30 da manhã.

Regressei de carro, pela cidade adormecida, até casa. Não se via vivalma nas ruas, tudo tão silencioso e sereno – sabes, reparei melhor que a cidade não é muito bonita. E com aquela iluminação rarefeita e o céu tão negro, Pemba parecia um adolescente com acne – desconcertada, feia, perdida, à espera de uma Mãe que lhe faça a cama.

Quando cheguei a casa, como suspeitava, demorei imenso tempo a adormecer – eras tu naquela escuridão, no meio da areia a dizer-me adeus, eram os galos que se apresentavam ao serviço às 3h30 da manhã, foi o vizinho que teve uma insónia e acordou às 4 da manhã e começou a fazer barulho. Devo ter adormecido pouco antes do despertador ter tocado às 5h30 da manhã. Custou-me muito ter saído da cama.

Achei melhor tomar um banho, mesmo que frio, e arrumei tudo como combinamos. Tomei o pequeno almoço e às 6h30 estava com o Sr. Mário dentro do carro a caminho de Tandanhangue.

Fizemos a viagem num silêncio cordial, conversamos um pouco, mas deixamos que cada um viaja-se dentro de si também.

O Pai do Zulficar combateu pelo exército português, na época colonial e levou com uma mina que lhe deu cabo de um joelho. Deitaram fogo às suas lojas durante a guerra civil e já fez essa viagem que estás a fazer dezenas de vezes.

Foi ele que me disse que não chegarias hoje, com este vento contra, só irás chegar ao Ibo amanhã.

Foi ele que me disse que o povo moçambicano “é um povo que sofre”. E é, meu amor. Tu fizeste aquela estrada tantas vezes como eu. Os miúdos tão pequenos a carregar água na cabeça, as mulheres logo de manhã a carregar lenha, molhos gigantes de lenha na cabeça, os velhos nas bicicletas com canas de bambu enormes – vê-se que aquilo é um esforço.

E é tão cedo, e faz tanto calor, e eles andam tanto a pé até à machamba e levam com o pó dos carros, a lama da chuva e as nuvens dos mosquitos. E os meninos, sempre descalços brincam com pedras e paus.

Parei na estrada para comprar uma saca de carvão como me tinhas dito. Cada saco é 70 meticais mas se levas o saco pagas vasilhame! Com o saco são 100 meticais. Comprei a duas mulheres e foi o Sr. Mário que falou com elas.
Metemos a tralha toda dentro do barco-chapa e ainda esperamos 1 hora dentro do barco por mais dois chapas atolhados de gente. E foi aquele filme do costume; mas acho que desta vez pior! Mais elaborado. No meio dos passageiros e da mercadoria havia duas motas, sacas de carvão, farinha, açúcar, caixas de cigarros, galinhas, um pudim dentro de um saco com um par de ténis, sacas de manga seca e mandioca, um saco de carne crua, com moscas agarradas, sacos e sacos, malas e crianças.

Partimos contra o vento, tal como tu, com imensa ondulação. Levei com muita água, o barco pesadíssimo e demoramos duas horas a chegar ao Ibo.

Sabes que por viajar sozinha, sinto muito mais a diferença de tratamento, do que quando ando contigo. Quase que eu só existo se o "patrão", tu, também estiveres presente. O homem do barco-chapa foi muito bruto comigo, não gostei da forma como me tratou, era mal educado e percebi que fazia de propósito. Disse “mezungo” imensas vezes, sendo eu a única branca no barco (havia lá outro, mas era homem e da Fundação Aga Kahn).

Duas horas depois chegámos, paguei-lhe 100 meticais e depois ele veio pedir-me mais 30 pelo saco de carvão – eu dei-lhe os 30 só para não o ver mais. Veio o Manobra ter comigo e ajudou-me a tirar tudo do barco, até a saca de carvão. E depois ainda veio o Tiaheri, que tem aquele ar muito doce, porque vê-se que é um menino bom. Assim os três fomos até nossa casa, onde cheguei com a sensação estranha de não te ter, como de costume, ao meu lado.

Abri todas as janelas! Em três dias da nossa ausência fez-se pó e havia vestígios de ratinhos com algum veneno comido. Limpei a cozinha e fiz o almoço. Cozi massa e fiz tomate com azeite, alho e orégãos. Pus a mesa e sentei-me sozinha no alpendre a almoçar sozinha, claro. Eu e a casa a olhar para o jardim. Resolvi limpar um pouco a casa depois arrumei os sacos e saí à procura de uma lanterna para o Sahid.

(Continua)

**excertos do meu Diário Pessoal escrito durante a minha estadia em Moçambique, entre Julho de 2010 e Agosto de 2011 

Comentários

Anónimo disse…
Que quadro tão bonito.Podia ser um quadro de Turner.Não é que a vida seja curta , a vida para alguns até é bastante longa , vida não é é suficiente larga.Fiquei muito comovido.

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