da liberdade de espírito

 
Vejo pouquíssima ou nenhuma televisão.
Para mim a televisão e certos canais, é tipo MacDonald's.
Acho que gosto daquilo tudo, mas evito porque sei que não é do mais saudável.
Mas quando me entrego à causa, faço-o até ao fim. Como as batatas com molho, bebo litros de coca-cola e besunto os dedos de cheiro a hamburguer.
Depois de me encher do "lixo" todo, dou uns tempos de intervalo, até à próxima visita.
Com a televisão é o mesmo. No caso, com os nossos canais. 
Eu nunca vejo TVI, mas quando vejo é para me colar ao "Big Brother" ou à "Casa dos Segredos" - a coisa mais desprovida de movimento cerebral. É só abrir e fechar olhinhos.
Calha que, assim como o MacDonald's nos apresenta macarrons de framboesa, também a TVI certo dia me deu uma surpresa inesperada.  
Apanhei a reportagem a meio. Depois do Jornal da Noite, no ReporterTvi - uma peça bem escrita e profunda, tão urgente para os dias de hoje. E foi por isso que me chamou tanta atenção. Encontrar macarrons na Versailles é de se esperar, mas no Mac Donald's é que não.
Afinal, então, sobre o que era a reportagem?
Liberdade de Espírito.
tout court.
A liberdade de espírito nas suas versões: política, espiritual, intelectual, social...
Interessante também pelo jornalista ter abordado pessoas tão distintas como deputados, monges, filósofos, antropólogos...
A liberdade é, afinal, um engano.
Sempre tive esta teoria e assim a pude comprovar. Nunca uma pessoa se assume tão solitária, quanto mais livre é - de espírito.
Para mim, o ser livre é tão agonizante quanto ser escravo. (num sentido figurado, obviamente).
A liberdade de espírito é um estado, um sentir apaziguador com o mundo que dá simplicidade e tranquilidade. É absolutamente maravilhoso, como penoso. Porque quando se o atinge, existe uma solidão insular.
Comecei a pensar nesta teoria quando estava no Ibo - havia tempo e matéria para desenvolver o assunto. Vivia numa ilha, no meio do nada, em que teria tudo para ser totalmente livre, ou seja, era dependente de absolutamente nada.
E existia um homem que personificava a minha teoria - o Dimitri. Não teria 40 anos, francês, filho de Pais "bem estabelecidos", culto, interessante, vivia sozinho numa casa em frente ao mar, carregada de livros, de tinta comida pelo sol da tarde, de portadas românticas, de cães perdidos, de um jardim tropical e de um mistério intrigante. De vez em quando pegava no barco e desaparecia velejando até Pemba, ou até onde lhe desse na cabeça. Outras vezes ficava ausente por mais tempo e ía até França, Malawi, ou Tanzânia, tratar dos vistos. 
O Dimitri era totalmente livre. E totalmente sozinho. 
Do espírito livre, disse um monge da Ordem da Cartuxa (o fenómeno mais medieval do nosso tempo, cujo voto absoluto de silêncio me causa fascínio e curiosidade, pois sempre fui, e serei, um extremo de mim mesma), à reportagem da TVI: "ser livre é ser igual a si próprio e hoje somos todos cada vez mais iguais uns aos outros."
Logo aqui, "morrem" 99% dos que se acham diferentes, porque achar-se diferente é logo ser igual a todos os outros. 
Eu sofro pela consciente agonia de que sou precisamente igual a todos, nem mais, nem menos e por isso sempre me disfarcei pelo desapego. Pois também a liberdade de espírito casa com desapego. E mais uma vez, passar meses num lugar vazio de coisas, deu-me o culto do desapego. Deu-me o prazer de uma vida simples, tal como um eremita, um Dimitri, um monge da Cartuxa.
E quanto mais experimentava a vida simples, mais a compreendia e dela necessitava. 
Mas sempre, sempre me questionei por uma coisa: então e o amor?
Onde fica no meio disto tudo, o amor.
O amor pela natureza, aceito. Mas eu não me convenço dessa ideia de que o espírito se alimenta do incorpóreo, e que a natureza nos dá tudo o que precisamos.
Eu preciso de um outro, do apego das sensações, cheiros, sons, contemplações, sabores e até sonhos. 
A liberdade, como desapego, retira-nos esses sentidos. O monge garante que não precisamos de nada mais, o Dimitri também dizia que não precisava de nada mais a não ser a casa, o barco e os livros.
Mas é tudo uma mentira. É tudo um engano.
Há a carência do outro. E quem se diz livre, cala essa fome.
Como quem faz dieta, mas habitua-se a ter fome. 
A liberdade suprema traz isolamento e solidão.
Um espírito inteiramente livre é um lugar sozinho. Conquista-se um apaziguar tão certo entre o corpo e o universo, mas há uma carência absurda de com quem construir uma obra de amor. 
Porque eu não entendo como o ser livre pode viver sem amor.
Porque eu gosto do MacDonald's e da Versailles, dos hamburgueres e dos macarrons, mas o que alimenta o meu espírito é o absoluto amor.
Do que sinto pelo meu filho, que, sem perceber como, cresce todos os dias, quase a todos os minutos; e do que preciso de sentir por um outro. Livre também.
 
 
("A Lebre de Olhos de Âmbar", Edmund de Waal)


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