Resgatar o Tempo
Há muito, muito tempo atrás, R. e A. viviam na Ilha do Ibo. A sua casa, em frente ao mar, era de um só piso, toda contornada por um alpendre em colunas. Tinha as janelas em vidro, o telhado em telha de Marselha, o chão em mica de Bilibiza, uma acácia vermelho fogo no jardim e dois coqueiros. A casa estava de frente para a Ilha de Quirambo, a mais próxima do Ibo, que se avista de um lado ao outro, atravessando o canal entre as duas.
Na sala de pé direito de quase cinco metros, havia um relógio, que no seu pêndulo, entre uma seta do cupido, que encerrava todas as juras de amor feitas um ao outro, estavam as suas iniciais: R. e A.
R. gostava de ouvir o relógio a funcionar, aquele barulho lembrava-lhe uma melodia, do tempo que lhe passava e da vida que muito livremente fluía entre si e o mundo.
Depois de uma noite de forte temporal, com chuva e trovoada, alguém entrou pela janela que se tinha partido com a força do vento e levou o relógio. Ficou um vazio naquela sala e na alma de R. e A. faltava aquele som amadeirado e suave das batidas do pêndulo, o guardião daquela dança entre os dois. Para lá e para cá.
E por muitas noites, depois desse temporal, os dois ficavam sentados no alpendre de frente para o mar, e diz-se que em noites de quarto crescente, em que o mar estava mole e cansado e as árvores do mangal mais afundadas no matope (lama) e mesmo os peixes nadavam mais baixinho e mais junto ao fundo do mar, em que quase parecia que o mundo estava parado, eles ouviam o tic-tac, o som pêndulo que vinha do outro lado do mar, do lado de Quirambo.
R. e A. voltaram aquela Ilha muito tempo depois. Não se sabe exactamente quanto tempo passou, será demasiado arriscado acreditar que foram eles mesmos que muitos anos depois lá voltaram. Aquela casa já estava há muito abandonada, e muito pouca gente habitava a Ilha.
Mas é certo que no ano de 2011, no mês de Março, R. e A. caminharam duas horas a pé até Quirambo. Entre o mangal, atravessando canais, braços de mar, com a sombra das árvores, os caranguejos que se escondem a cada pegada, os peixes que ficam esquecidos nos centímetros de água salgada, caminharam cruzando-se com homens e mulheres, crianças e pássaros que tão sensivelmente espetam o seu bico no chão comendo tudo o que a maré vazia pode deixar esquecido na areia e no lodo.
Chegaram à aldeia, com pouco mais do que vinte casas de pau-a-pique e colmo, a Escola Primária feita de cimento, duas bombas de água e duas gigantes mangueiras. Havia, como sempre, muito cheiro de quilos de peixe a secar, nas camas de rede postas ao sol escaldante, crianças sem brinquedos e um cão que dormia. Um homem local chamou-os, convidou-os a entrar em sua casa e então que os dois viram o relógio. Já não se ouvia o som das letras, mas estava intacto, apenas carregado de pó e teias de aranha e suplicava que o levassem dali, de volta “a casa”.
No dia seguinte, logo de manhã muito cedo, R. e A. foram à praia para arranjar um barco e atravessar o canal. Foram à casa do homem e voltaram com um saco, e lá dentro o que parecia ser uma caixa enrolada numa capulana. Os pescadores ficaram sem saber o que era, e ninguém conseguiu descobrir o que vinha lá dentro.
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E assim, R. e A. resgataram o tempo, o tempo de ver o besouro preto a beijar as flores de maracujá, de ver a osga debaixo da luz a caçar mosquitos, de ouvir as velas, à noite, a queimar a sua cera, de cheirar a roupa a secar na corda, de ver as crianças a trepar amendoeiras e a comer o fruto, de caminhar pela praia e ver o por do sol, numa vénia de fogo longínqua, da memória de uma casa em frente ao mar.
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