Pequeno conto nº 2


Duas noites depois daquele sonho e do enterro da andorinha, quando de manhã abro a porta de casa, reparo que no chão do alpendre da casa do lado está uma faca. Está uma faca no chão, com a lâmina apontada para a nossa casa, para mim.


Pensei que pela hora do almoço, quando a vizinha voltasse a casa, desse conta daquela faca no meio do chão. Mas a verdade é que já é de noite e a faca continua lá.
O que faz uma faca no chão? Corta os passos das pessoas, divide o pó ao meio, tira a pele do vento?


Está apontada para a nossa porta, parece que me acusa. Quem pega nela? Eu não lhe quis pegar. Ela ainda lá está. A vizinha não vê a faca. A faca esconde-se da vizinha. Já cortou abóboras duras, cana-de-açúcar e maçaroca, talos de couves, rasgou a pele da cabra e talvez a sua própria pele (da vizinha). E por isso deitou-a fora! Chega de sangue nos dedos! Rua com a faca!


E a faca ficou no chão de cimento, virada para a minha porta. Pede-me então uma segunda oportunidade. Quer ser faca outra vez e não um bocado de lixo no chão. É uma faca envergonhada da ferrugem que tem, do parafuso que lhe falta, do estado miserável a que chegou… é uma faca que suplica cortar.


Só quer cortar e pede desculpa, mas quando sente a pele não lhe resiste. É-lhe mais forte do que o tétano que vive dentro de si. Quando sente aquela pele macia de quem lhe pega é-lhe irresistível. Tenta a todo o custo entrar lá dentro, introduzir-se dentro da pele e depois ver aquele líquido encarnado e intenso, que mancha tudo, que suja tudo, que mete a mete no lavatório, de lâmina untada de sangue e gritos: “Chega! Rua com a faca!”


E assim está a faca. No chão de cimento. Apontada para a minha porta, a pedir para ser faca.

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