Missão Niassa - Parte III
Sete dias.
2.500 km.
40 horas de condução.
Uma Toyota Hillux 4x4.
Um mapa e dois guia de viagem.
Uma mochila e um saco cama.
Um pneu furado.
O Colossal Niassa.
De regresso a Lichinga. Um ponto de paragem útil e agradável para quem se prepara para subir até à Reserva do Niassa. Tomámos o bom café Delta e seguimos viagem até Marrupa, a cidade mais a sul da Reserva onde a partir da qual seguem 114 km de terra batida que entram pelo Niassa adentro. Por uma Reserva que é quase metade do tamanho de Portugal!
Até lá chegar, foram cerca de 355km desde Lichinga, com uma já potente amostra do que nos esperava. Estavamos no centro da Província do Niassa, a mais "abandonada" terra de Moçambique, com a densidade populacional mais baixa do País (inversamente proporcional à vida selvagem e à flora natural). É um colosso vazio, chegamos a fazer tiradas de mais de 100 km sem nos cruzarmos com nenhum carro, nem uma única aldeia. Só um imenso tapete verde, numa planície que se estendia à esquerda e à direita seguindo nós pelo centro, numa estrada de alcatrão, num admirável bom estado de conservação.
Em Marrupa, voltamos a ponderar a mesma questão que nos era evidente desde o início da viagem: alojamento no Niassa. Não tinhamos tenda, dormir ao relento é morrer congelado ou de susto com um elefante, dentro da Reserva (no centro da mancha), há alojamentos apenas para escuteiros e rangers, na periferia há acampamentos de luxo para turistas e caçadores desportivos a preços super-ocidentais!
Amigos nossos já tinham feito esta viagem e ficaram nos acampamentos "top" com um desconto de 50% por ser no momento e sem reserva: aparecer e ficar. Nós tinhamos essa ideia também!
As indicações são inexistentes, pois quem ocupa esses alojamentos chega de avião (há dezenas de pistas de aterragem na Reserva). Assim tinhamos algumas pistas como: o Rio Lugenda, a aldeia, duas mangueiras e uma casa branca, a ponte, um caminho estreito e entre o mato,...
O último troço desta viagem, até chegarmos ao primeiro acampamento (são 3 alojamentos com 20 km entre si) foram cerca de 60 km sempre no mato, com espaço apenas para passar o carro (muita estalada levou o retrovisor do meu lado) e com a luz do dia já a terminar. Atravessamos uns quantos riachos, já secos (na época das chuvas todos estes alojamentos estão fechados), e andávamos, andávamos sempre numa corrida contra o tempo, contra a noite que se impunha.
Já dentro da Reserva, por onde passamos um posto de controle (pedem a matrícula e identificação do condutor), disseram-nos que para o primeiro acampamento só faltavam mais 20 km e depois era uma curva à esquerda e outra à direita (!).
E nós no máximo das nossas forças, exigindo o máximo de atenção lá seguimos viagem.
Finalmente começa a escurecer e vemos que temos um farol fundido. Num lusco-fusco de adrenalina, começamos a ver bichos, antílopes, deitados em zonas mais amplas, a olhar para nós. Foi aí que eu tomei consciência que andavamos há quase 1 hora a percorrer uma zona selvagem com o nosso carro, e que não olhavamos a meios para chegar ao acampamento e que efectivamente podiamos ver um elefante ou atropelar um impala a qualquer minuto.
Não sei como, mas apareceu uma curva à direia e outra à esquerda e vimos luzes! Era o primeiro acampamento: Lugenda Camp. Um sonho, que só em lua de mel nos seria permitido. Mas vá, 11 anos de casamento merecem bem duas noites numa tenda de luxo, com banheira e cama king size! Conseguimos os 50% de desconto (tarifa walk in) e por dois dias mergulhamos naqueles mimos selvagens.
Fizemos quatro safaris, um deles de noite cerrada. Vimos dezenas de elefantes, um leopardo, hipopótamos, antílopes, macacos e pássaros belíssimos. Subimos aos inselbergs, fizemos um pic-nic no meio da savana e uma fogueira junto ao Rio, bebemos um aperitivo com a lua cheia e percorremos kms e kms de mato cerrado, numa paisagem muito própria e diferente do Safari na Savana - tudo era mato, como um jogo em que tinhamos de nos desviar das árvores, do capim e ainda não acertar num elefante!
O que eu mais gostei? Muita coisa, a saber: tomar banho de imersão foi um absurdo que me soube pela vida, com direito a sais de banho e toneladas de gel de banho para fazer bolhinhas; o safari de noite foi carregado de adrenalina, vimos um leopardo e ainda um fogo que muito suavemente ia consumindo o mato (ver um fogo, assim de noite, é hipnotizante); ouvir os leões a rugir durante a noite e os hipopótamos no Rio; subir a um inselberg e do topo ter uma vista 360º sobre toda a paisagem e finalmente, ter às 5h30 da manhã, um elefante a 5 metros da porta da nossa tenda a comer as folhas de uma árvore (ele nas calmas, nós os dois pareciamos dois miúdos a tremer de excitação!)
Foi absolutamente único e espero que não levem mais 11 anos a repetir uma coisa igual!!
Aprendemos que "África arde": vimos muitos fogos, muitos deles postos, porque é suposto que o mato arda, o fogo faz parte deste sistema ele é fonte de vida também (não deixa de ser tão peculiar esta contradição). Aprendi a observar as árvores mais preciosas do mundo: ébano, mogno, pau preto, wengué. Aprendemos que os elefantes são matreiros e fazem imensas asneiras - o elefante que nos apareceu à porta da tenda é o Ben, que praticamente foi adoptado pelo acampamento e farta-se de fazer estragos no jardim! Aprendi que a caça furtiva existe, e o marfim é ainda (e estupidamente há pessoas que apoiam isso) motivo para que morram por ano cerca de 300 elefantes; e que a caça desportiva é, por outro lado, aquela que sustenta a Reserva.
Chegam a morrer 1400 animais por ano no Niassa, vítimas de caçadores furtivos que buscam marfim, peles, carne, cornos, etc... Há dezenas de rangers que vivem dentro, no centro-centro da Reserva, no rasto dessas bestas estúpidas que matam seres vivos magníficos.
A gerente do nosso acampamento é casada com um ranger, ela nunca sabe por onde ele anda e quando chega a casa. A mim só me vem sempre a mesma conclusão, de que esta terra, África, pertence à natureza e aos bichos, o Homem aqui não faz nada, só destrói.
À saída do acampamento, já de regresso a casa, passamos a fronteira da Reserva para entrar numa zona "pública" - o cenário era desolador. Florestas inteiras a serem destruídas por chineses (na sua maioria) que levam toneladas e toneladas de madeira para a China. Além disso, sabemos hoje, há o petróleo que já encontraram a Norte (Pangane), ao largo da costa, e o carvão, na zona de Tete, de onde se espera que seja a primeira reserva do mundo de minério pronto a ser extraído pelos brasileiros nos próximos anos, à quantidade de cerca de 1 milhão de toneladas por dia.
É até acabarem com isto. O Homem, é até não encontrar mais por onde sugar. Os animais e a natureza apenas aguardam, sem forma alguma de se defenderem sem nunca rejeitar nada, apenas dando e dando, numa estúpida generosidade que me revolta sempre e cada vez mais.
(Continua)
2.500 km.
40 horas de condução.
Uma Toyota Hillux 4x4.
Um mapa e dois guia de viagem.
Uma mochila e um saco cama.
Um pneu furado.
O Colossal Niassa.
De regresso a Lichinga. Um ponto de paragem útil e agradável para quem se prepara para subir até à Reserva do Niassa. Tomámos o bom café Delta e seguimos viagem até Marrupa, a cidade mais a sul da Reserva onde a partir da qual seguem 114 km de terra batida que entram pelo Niassa adentro. Por uma Reserva que é quase metade do tamanho de Portugal!
Até lá chegar, foram cerca de 355km desde Lichinga, com uma já potente amostra do que nos esperava. Estavamos no centro da Província do Niassa, a mais "abandonada" terra de Moçambique, com a densidade populacional mais baixa do País (inversamente proporcional à vida selvagem e à flora natural). É um colosso vazio, chegamos a fazer tiradas de mais de 100 km sem nos cruzarmos com nenhum carro, nem uma única aldeia. Só um imenso tapete verde, numa planície que se estendia à esquerda e à direita seguindo nós pelo centro, numa estrada de alcatrão, num admirável bom estado de conservação.
Em Marrupa, voltamos a ponderar a mesma questão que nos era evidente desde o início da viagem: alojamento no Niassa. Não tinhamos tenda, dormir ao relento é morrer congelado ou de susto com um elefante, dentro da Reserva (no centro da mancha), há alojamentos apenas para escuteiros e rangers, na periferia há acampamentos de luxo para turistas e caçadores desportivos a preços super-ocidentais!
Amigos nossos já tinham feito esta viagem e ficaram nos acampamentos "top" com um desconto de 50% por ser no momento e sem reserva: aparecer e ficar. Nós tinhamos essa ideia também!
As indicações são inexistentes, pois quem ocupa esses alojamentos chega de avião (há dezenas de pistas de aterragem na Reserva). Assim tinhamos algumas pistas como: o Rio Lugenda, a aldeia, duas mangueiras e uma casa branca, a ponte, um caminho estreito e entre o mato,...
O último troço desta viagem, até chegarmos ao primeiro acampamento (são 3 alojamentos com 20 km entre si) foram cerca de 60 km sempre no mato, com espaço apenas para passar o carro (muita estalada levou o retrovisor do meu lado) e com a luz do dia já a terminar. Atravessamos uns quantos riachos, já secos (na época das chuvas todos estes alojamentos estão fechados), e andávamos, andávamos sempre numa corrida contra o tempo, contra a noite que se impunha.
Já dentro da Reserva, por onde passamos um posto de controle (pedem a matrícula e identificação do condutor), disseram-nos que para o primeiro acampamento só faltavam mais 20 km e depois era uma curva à esquerda e outra à direita (!).
E nós no máximo das nossas forças, exigindo o máximo de atenção lá seguimos viagem.
Finalmente começa a escurecer e vemos que temos um farol fundido. Num lusco-fusco de adrenalina, começamos a ver bichos, antílopes, deitados em zonas mais amplas, a olhar para nós. Foi aí que eu tomei consciência que andavamos há quase 1 hora a percorrer uma zona selvagem com o nosso carro, e que não olhavamos a meios para chegar ao acampamento e que efectivamente podiamos ver um elefante ou atropelar um impala a qualquer minuto.
Não sei como, mas apareceu uma curva à direia e outra à esquerda e vimos luzes! Era o primeiro acampamento: Lugenda Camp. Um sonho, que só em lua de mel nos seria permitido. Mas vá, 11 anos de casamento merecem bem duas noites numa tenda de luxo, com banheira e cama king size! Conseguimos os 50% de desconto (tarifa walk in) e por dois dias mergulhamos naqueles mimos selvagens.
Fizemos quatro safaris, um deles de noite cerrada. Vimos dezenas de elefantes, um leopardo, hipopótamos, antílopes, macacos e pássaros belíssimos. Subimos aos inselbergs, fizemos um pic-nic no meio da savana e uma fogueira junto ao Rio, bebemos um aperitivo com a lua cheia e percorremos kms e kms de mato cerrado, numa paisagem muito própria e diferente do Safari na Savana - tudo era mato, como um jogo em que tinhamos de nos desviar das árvores, do capim e ainda não acertar num elefante!
O que eu mais gostei? Muita coisa, a saber: tomar banho de imersão foi um absurdo que me soube pela vida, com direito a sais de banho e toneladas de gel de banho para fazer bolhinhas; o safari de noite foi carregado de adrenalina, vimos um leopardo e ainda um fogo que muito suavemente ia consumindo o mato (ver um fogo, assim de noite, é hipnotizante); ouvir os leões a rugir durante a noite e os hipopótamos no Rio; subir a um inselberg e do topo ter uma vista 360º sobre toda a paisagem e finalmente, ter às 5h30 da manhã, um elefante a 5 metros da porta da nossa tenda a comer as folhas de uma árvore (ele nas calmas, nós os dois pareciamos dois miúdos a tremer de excitação!)
Foi absolutamente único e espero que não levem mais 11 anos a repetir uma coisa igual!!
Aprendemos que "África arde": vimos muitos fogos, muitos deles postos, porque é suposto que o mato arda, o fogo faz parte deste sistema ele é fonte de vida também (não deixa de ser tão peculiar esta contradição). Aprendi a observar as árvores mais preciosas do mundo: ébano, mogno, pau preto, wengué. Aprendemos que os elefantes são matreiros e fazem imensas asneiras - o elefante que nos apareceu à porta da tenda é o Ben, que praticamente foi adoptado pelo acampamento e farta-se de fazer estragos no jardim! Aprendi que a caça furtiva existe, e o marfim é ainda (e estupidamente há pessoas que apoiam isso) motivo para que morram por ano cerca de 300 elefantes; e que a caça desportiva é, por outro lado, aquela que sustenta a Reserva.
Chegam a morrer 1400 animais por ano no Niassa, vítimas de caçadores furtivos que buscam marfim, peles, carne, cornos, etc... Há dezenas de rangers que vivem dentro, no centro-centro da Reserva, no rasto dessas bestas estúpidas que matam seres vivos magníficos.
A gerente do nosso acampamento é casada com um ranger, ela nunca sabe por onde ele anda e quando chega a casa. A mim só me vem sempre a mesma conclusão, de que esta terra, África, pertence à natureza e aos bichos, o Homem aqui não faz nada, só destrói.
À saída do acampamento, já de regresso a casa, passamos a fronteira da Reserva para entrar numa zona "pública" - o cenário era desolador. Florestas inteiras a serem destruídas por chineses (na sua maioria) que levam toneladas e toneladas de madeira para a China. Além disso, sabemos hoje, há o petróleo que já encontraram a Norte (Pangane), ao largo da costa, e o carvão, na zona de Tete, de onde se espera que seja a primeira reserva do mundo de minério pronto a ser extraído pelos brasileiros nos próximos anos, à quantidade de cerca de 1 milhão de toneladas por dia.
É até acabarem com isto. O Homem, é até não encontrar mais por onde sugar. Os animais e a natureza apenas aguardam, sem forma alguma de se defenderem sem nunca rejeitar nada, apenas dando e dando, numa estúpida generosidade que me revolta sempre e cada vez mais.
(Continua)
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