A despedida

No final de uma nova vida, começava uma viagem.
Fechamos as portas das casas de Pemba e do Ibo, com a estranha sensação de não ser um fim para sempre. Qualquer coisa de nós ficou em Moçambique, qualquer coisa de Moçambique ficou aqui dentro de nós.
Vendemos o carro, as ferramentas, os sofás, a impressora, a tenda e o colchão, a ventoinha e a cómoda, o material de mergulho e de pesca e demos pratos e talheres, frigideiras e panelas, alguidares e molas da roupa.

Quando fechamos as nossas casas de Pemba e do Ibo fiquei com a sensação de que nada na vida é de facto para sempre. E de que tudo se monta e desmonta, se constroi e destroi, conforme a nossa vontade e a nossa força. Uma casa existiu, duas aliás, onde vivemos. Carregadas de coisas, de objectos nossos, de rituais, de rastos e de pedaços de pistas que vamos deixando. Mas conforme tudo se constroi à nossa volta, tudo é assim tão facilmente “descartável”.
Aprendi que afinal é fácil desmontar um sonho, o pior é que enquanto o vivemos, vamos conhecendo pessoas e lugares e são esses afinal que não se soltam, como quem vende um gerador e uma bomba de água.

Foi o mais difícil nesta despedida. Foi sentir do outro lado a nossa tristeza de partir, de alguém que nos quer bem e que, de uma forma consciente e realista, acredita que nunca mais iremos voltar. O saber que “nunca mais vamos voltar” é uma seta dura que se espeta no coração.
Os abraços são longos e apertados e há um sentimento que se partilha, e que não tem outro corpo que não seja o da tristeza. Dói quando partimos e dói mais ainda quando nos despedimos de um lugar e de alguém que sabemos ser difícil voltar a ver, voltar a ser igual, voltar ao dia em que nos despedimos.
É curioso que quando me preparava para esta despedida, muito decidida, apenas via o seu lado prático, lógico e racional. Há muito que tenho esta ideia de que alguém deveria escrever um “Manual Prático para Despedidas”. Porque ninguém nos avisa do que é esta dor que se põe no nosso colo. Escrevi em Pemba, pouco depois de ter acabado de chegar, um texto que começava assim: “Manual de Preparação para o “Adeus” (ou antes, o que é ser emigrante, afinal, o que agora se chama de expatriado não é mais do que um emigrante requintado, mas cheio de “dores” e sofrimento também)”.

Foi há um ano, logo eu tinha apenas a perspectiva de quem tinha acabado de sair da terra onde viveu 33 anos da sua vida.
Falava em três variáveis que ajudavam nesta Preparação: nº1 o tempo; nº 2 a capacidade do Homem para a aceitar a mudança (e fazê-la) e nº 3 fazer uma Lista com duas colunas, do lado esquerdo o “antigo Adeus”, aquilo que tínhamos deixado, do lado direito o “novo Adeus”, que era para mim a nova vida que vivia em Moçambique.
E eu escrevi a tal Lista pouco tempo depois. Aqui vai o que eu pûs na coluna do "novo Adeus": Andar descalça em casa e na rua, acordar com o nascer do dia e sentir o pôr do sol, molhar-me e salgar-me com a água do mar, sem pensar se fico com frio ou se estraga a roupa, dormir de janelas abertas, ouvir os pássaros e os cabritos na rua, descobrir todos os dias novos pássaros e novos cabritos, ouvir vozes de crianças, de mulheres a cantar e de gente (nunca de carros, buzinas, trânsito), tomar um banho ao final do dia e pôr uma roupa fresca, viver numa ilha, comer caranguejo que veio do mangal, andar de carro pela estrada de terra, passar pelas aldeias, cheirar as magnólias, lavar a roupa de manhã que fica seca ao fim da tarde, não sentir o tempo a passar, nem os dias, ou as semanas, não ter saudades…
Agora estou de volta. À minha terra, à minha outra vida, à minha cidade, ao meu canto onde sinto que sempre pertenci. E agora tenho saudades.

Comentários

João disse…
Faz parte do meu "código pessoal", e já desde que comecei a observar o mundo que me rodeia, com dose minima de sentido critico, cultivar a crença que por onde passo deixo sempre um rasto, que algo mim deixa este corpo (seja por via fisica ou espiritual) e que se junta a esse mundo que os meus sentidos processam.
As tuas experiências são fortes e essa sensação de acumular memórias mas ao mesmo tempo de deixar parte de ti tão longe é prova maior da natureza humana.
E espero que também uma reserva gigante de força, confiança e coragem.
Grande Beijinho

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