E o fim!
Parte
III
Maria
Amália saiu para mais uma ida semanal ao cinema. Assim que fechou a porta de
casa, preparando-se para enfiar os head-phones nos ouvidos, deu um encontrão no
homem que salvou o Tito.
Estava
novamente de passagem pela rua. Que coincidência!
(Maria
Amália lembra-se que havia uma frase num filme que dizia não haver
coincidências.)
- O Tito
está melhor?
-
Está bem, Obrigado!
-
Posso perguntar-lhe onde vai?
-
Como?
-
Sim. Onde vai?
- Ao
cinema. Sozinha.
Não
foi por acaso que Maria Amália disse que ia ao cinema sozinha. Já tinha lido
num Livro de auto-ajuda, que se uma mulher se mostrar disponível para o outro,
é muito mais simples conseguir um convite, um primeiro encontro. Usando a
táctica do Livro Estar Sozinha Nunca é
Para Sempre, esperou pelo resultado.
-
Posso ir também?
-
Não sei se gosta do filme.
- Não
é isso que agora importa.
Não é isso que agora importa.
Podia
ser uma daquelas frases. Acrescentando-se: O
que importa sou eu e tu.
Parte
IV
Maria
Amália está em casa, sentada no sofá a comer donuts do Minipreço fabricados com produtos sucedâneos. Está a ver
um daqueles Programas de televisão para mulheres que estão em casa, onde se
fala em crianças com alergias, receitas de compotas, maridos ausentes,
casamentos falhados, frustrações e angústias. Os donuts consolam Maria Amália. O chocolate na cobertura e o açúcar
da massa têm essa capacidade. Nada a tranquilizava mais do que o chocolate. Um
calmante automático muitas vezes consumido em segredo e às escondidas, assim
como um dependente, um fraco dependente. A dolorosa consciência de si própria
que tentava apagar com comida, afogando as vozes interiores em bolo alimentar,
agora sucedâneo.
O Tito
canta lá fora. Não há vento.
A
sessão é às 15h45. O filme é O Sentido da
Vida.
Maria
Amália interrompe o estado sedativo dos donuts
e pensa sobre o sentido da vida. Para o Tito o sentido da vida era cantar numa
gaiola. Não seria um pássaro feliz, nem angustiado. Para si, adivinhava que o
sentido da vida talvez fosse qualquer coisa pela qual faça sentido estar vivo e
ter o gosto pela vida. Mesmo que essa vida seja estar sentada 7 horas por dia à
janela a fazer crochet ou dentro de
uma gaiola a cantar. Descobriu que, afinal, ainda lhe faltava descobrir o
sentido da vida, antes de deixar de a viver. Talvez não fosse má ideia partir
nessa busca, de uma consciência tranquila sem ser afogada em comida ou em vozes
estranhas. Talvez começar a ouvir as vozes estranhas. Pensou que era
verdadeiramente excitante ser alguém que ainda não tinha pensado no sentido da
vida e estar a descobri-lo pela primeira vez parecia-lhe um renascimento.
Sempre pensou um dia em escrever os diálogos dos filmes que consumia como os donuts do Minipreço. Seria esse o
primeiro passo para o sentido da sua vida: tentar começar a escrever aqueles
diálogos.
A
fotografia da Serrra da Estrela foi descolada do vidro e posta no lixo
Olhou
para as pontas dos dedos cheios de chocolate.
O
sentido da vida não é uma fantasia, é uma vivência presente. Como o canário que
canta, a vizinha que faz costura, o seu corpo que é obeso, o cinema que é
confortável e escuro.
Deitou
fora a caixa dos donuts. Lavou as mãos. Vestiu o casaco. Saiu.
Sabia
que primeiro ele devia segurar-lhe a cara entre as mãos, afagando-lhe o cabelo
enquanto a beijava serenamente, sem pressas. Seria assim o primeiro beijo do
Ricardo e da Maria Amália, numa sala de cinema às 15h45 daquela tarde.
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