Regresso de férias com a menos boa notícia de que um conto meu não foi seleccionado para um Livro de vários autores de uma editora da nossa praça.
Assim sendo, aqui vos deixo a primeira parte do conto: "Maria Amália: O sentido da vida".
Espero que gostem. Já que eles não.
Até já!
Maria
Amália
Parte
I
Maria
Amália estava em pé, tinha o seu Pai do lado esquerdo e do lado direito a sua
Mãe. Os três tinham ido à Serra da Estrela. Era indiferente o sítio onde tinham
tirado a foto porque o cenário era todo igual, todo branco. Podia ter sido num
estúdio com uma parede branca, seria o mesmo. Maria Amália lembra-se do cheiro
do casaco que tinha vestido naquele dia, do enjoo que sentiu durante a viagem e
da história que o Pai contou dos ciclistas que subiam a Serra, até à Torre, ficando
sem oxigénio, com os músculos das pernas atrofiados. Foram comer cabrito a Seia
e também tinha enjoado na viagem de regresso a Lisboa, numa auto-estrada escura
e húmida.
A
fotografia era uma fotografia triste. Estava na mesma moldura há muitos anos, fechada
entre uma chapa de madeira e um pedaço de vidro. Incomodada, sufocada por se
ter tornado numa memória sem vida. Há fotografias que não merecem viver em
memória alguma. Aquela era uma delas. Maria Amália era uma delas. Sentia-se uma
memória fechada numa moldura. Pouco ou nada teria mudado desde o tempo dessa
fotografia.
A
casa onde vivia com os Pais foi sempre a mesma. Os móveis e a televisão
antiquada, o corredor cansado e as cortinas esforçadas. Tito, o canário, que
estava à janela, era uma outra vida numa moldura engaiolada.
Desde
aquela fotografia tirada na Serra da Estrela, Maria Amália tinha entrado para a
Faculdade e terminado o curso em Direito. Agora está desempregada.
Aceita
uma mesada dos Pais e vive com uma solidão galopante e um vazio que vai
preenchendo de comida, como a argamassa que preenche uma parede de tijolos não
deixando nada a descoberto. Ela precisa de preencher o vazio. Talvez sempre tivesse
sentido esse vazio – desde pequena, como na foto triste da Serra da Estrela.
Era uma consciência de si própria que lhe dava essa incapacidade de lidar com a
vida.
Maria
Amália é filha única, de Pais filhos únicos. A curta família conta apenas com uma
Avó e uma Tia afastada. Os vizinhos são uma família mais aproximada. Mas os
vizinhos são criaturas a quem o mundo ainda não conseguiu decifrar qualquer
outra condição que não é amizade, nem família. É uma gente sem qualquer outro
nome. E Maria Amália sofria com as vizinhas, as amigas da rua, a Ana, a Luísa e
a Cláudia que já tinham saído de casa, já tinham casado e agora viviam em
Almada, no Montijo e em Massamá. Tinham uma casa e meninos.
E
ela não.
Para
se consolar, convenceu-se que, se calhar, tinha de ser assim. Tinha de viver em
casa com os Pais, não conhecer alguém, não casar e não ter uma família. Já se
apaixonara, mas sempre por alguém que não sentia o mesmo de si. E mesmo nunca
tendo beijado um homem, sabia exactamente onde e como queria que fosse esse
beijo.
Maria
Amália gosta de ir sozinha ao cinema. Nos dias em que as horas são passos de
chumbo, Maria Amália vê-as a passar a voar. Vive outras vidas, com homens e
mulheres, famílias, cenários, cidades americanas e europeias, músicas e
diálogos. E quando gosta das frases, aponta-as num caderno que costuma levar.
No Metro,
a caminho de casa, repete as frases em voz muda.
Não podes perder uma coisa que nunca
tiveste.
Tu fazes-me querer ser um homem melhor.
Eu e tu, só nós dois.
(continua)
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