diários de moçambique**#9

Diário de Moçambique. Volume 1. "do que te leva a ir"


13 de Dezembro de 2010 (2ªfeira)
Era uma vez uma rapariga, de joelhos esfolados, sardas no nariz, olhos verdes e franja desajeitada. Ela gostava mesmo de saltar à corda e jogar ao elástico – de brincar com as amigas e de subir ao palco. De se expor, de se mostrar, porque sentia que dentro de si crescia qualquer coisa de diferente.
Certo dia teve vontade de escrever, e na escrita saiam-lhe palavras diferentes, frases únicas. Ela nunca soube o que seria o dia seguinte, apenas vivia, nunca esperando muito do que de lá viesse – o que viesse seria bom. Pouco exigente? Pouco ambiciosa? Não. Ela era apenas uma rapariga, os seus sonhos eram diferentes – eram sempre memórias e cheiros, pessoas e sentimentos. Os seus sonhos eram sempre um momento presente, e não uma coisa que talvez nunca acontecesse.
Quando cresceu, reparava que se arrepiava quando ouvia música clássica e gostava de dançar – era apaixonada pelo Ballet. Dançava muito sozinha, no seu quarto, uma música imaginária e mexia, gestos, mãos, pernas, braços.
Nunca se deu bem com o amor, talvez. Não sabia o que era isso de ter de se controlar – achava que podia amar tudo ao mesmo tempo e dar tudo às pessoas. Quando se apaixonou pela primeira vez tinha 16 anos e achou que nada no mundo poderia ser mais perfeito do que aquela sensação. Claro, que como qualquer primeiro amor, foi um desastre que terminou 3 meses depois. Uma tragédia.
E ele então foi sempre fugindo dessa coisa que a tomava, que era o amor. E o querer entregar-se a alguém.
Às vezes um pouco triste e melancólica, a rapariga, já a caminho de ser mulher, pensava que os homens eram seres muito estranhos e que ela nunca iria conseguir atrair a atenção de ninguém – pois sempre se sentiu muito “transparente” ao lado das suas amigas, e por isso, nesse aspecto, tinha a sensação que os assustava.
Até que houve um dia em que, pela força do destino, conheceu um rapaz quase homem, de olhos de amêndoa, dentes brancos perfeitinhos, mãos de Príncipe e um sorriso genuíno.
Ele apaixonou-se tanto por ela, e ela por ele, que ali começaram a viver a sua história de amor e resolveram casar.
Ela com 23 anos, ele  a duas semanas de fazer 25. Era a maior aventura das suas vidas. Saiu cada um de casa dos seus Pais, ela de um grande ninho que a acolhia e foram viver para um apartamento em Lisboa.
Que mudança! Que sensação! Ir às compras, ganhar um ordenado, gerir uma casa, ter uma casa – era tudo tão novo para ela. Viver longe dos seus Pais, numa outra cidade, num novo universo. Estar com ele e os dois começaram a sua história.
E começou. E foi tão divertido. Os primeiros fins de semana a dois, casados; acordar na sua casa e partilhar as manhãs de descanso. Os jantares na cozinha, ir às compras ao Continente, o primeiro Natal e as primeiras férias.
Foi tão divertido descobrir a vida assim, a dois, sempre com o apoio dos Pais, claro, mas foi uma louca aventura a dois.
Depois as amigas começaram também a casar e houve uma altura em que ele lhe falou de filhos e ela sentia-se muito longe disso. Ainda não seria a altura certa – havia uma certa insegurança dentro de si.
Depois as amigas começaram a ficar grávidas e foi tudo mais ou menos ao mesmo tempo. E isso, sem se conseguir explicar muito bem, criou entre eles uma certa tensão.
Estavam no ano de 2004 quando também tentaram essa sorte, de se ser Pais.
É tal e qual quando tomamos a decisão de apanhar aquele comboio e não outro; o que se vai passar naquela carruagem, as pessoas, os instantes, são irreversíveis e irrepetíveis, não dá para mudar. Todo o percurso está traçado – e o que vai acontecer até se sair na Estação, só sucedeu porque tomamos a decisão de entrar naquele comboio.
E com eles assim foi.
Ao fim do primeiro ano, nada mais descobriram do que um quisto nela, que teve de ser retirado e falaram-lhe de “endometriose”.
No final desse mesmo ano resolveram mudar de casa e foram viver para um apartamento lindíssimo, de tectos altos e trabalhados, no centro da cidade, com tantas coisas novas e diferentes.
Os dois projectaram uma casa linda, linda de morrer. Fizeram pequenas obras e a casa parecia um apartamento no centro de Paris. Carregada de charme e romantismo – era uma casa retirada directamente de um romance. Branca, chão em soalho antigo perfeito, janelas grandes e uma atmosfera envolvente.
Seis meses após a mudança, e já com uma tentativa falhada de gravidez, a mulherzinha que sempre ficou com cicatrizes nos joelhos, foi despedida do seu fantástico emprego.
Aquele que a levava em 1ª classe aos Estados Unidos, às capitais da Europa, que lhe deu um carro topo de gama, telemóvel e agenda electrónica, que lhe deu um “estatuto” no mundo empresarial muito considerável, e lhe permitia comprar as coisas que quisesse , até um apartamento tão romântico.
Era o princípio do previsto “declínio” do mundo ocidental perfeito, a “bolha” que rebentava nos EUA e o declarado fim do “El Dorado” – da vida fácil, com casa e carro. Do consumismo puro e duro. A sociedade ressentia-se e a mulherzinha sentia os primeiros efeitos da tão falada “crise”.
A casa bonita tinha sido acabada de comprar e compunha-se como uma longa partitura a quarto mãos. Ficaram os dois sentados à mesa, na cozinha, onde jantavam todos os dias, a olhar para o escuro das traseiras do prédio.
Podia-se tentar e esperar – e talvez ela fosse trabalhar por conta própria, criar o seu negócio. Até lá passaria um ano e ela saberia o que fazer, tendo ele ficado no seu emprego, também “despromovido”, mas iriam os dois aguentar o “choque”. 
Para os dois foi um tempo de crescimento, ela construiu o seu ofício, dedicou-se a várias causas e recomeçou a sua escrita. Aquilo que sempre a tinha levado para o seu mundo, só o seu mundo.
E até arranjaram um cão!
Durante os dois anos seguintes continuaram com tratamentos – foram mais três tentativas, num nível que se poderia chamar de "ficção científica". O resultado foi sempre negativo e os dois decidiram não tentar mais. As consequências seriam fortes, a casa romântica foi a "terceira pessoa" que assistiu ao sofrimento dos dois.
Foi uma caminhada através do medo, da tristeza, da vergonha, da frustração, da raiva, do desespero. E da pergunta muito parva: porquê nós?

Ao mesmo tempo os dois foram construindo uma “empresa” a dois, uma dupla de trabalho na remodelação de apartamentos em Lisboa. Divertiram-se e fizeram bons projectos, ganharam dinheiro e conseguiram canalizar toda a sua energia para um objectivo comum – tal e qual se faz para um filho.
Mas havia mais um projecto em comum que queriam construir na Costa Alentejana, onde todos os Verões deixavam as suas intenções e sonhos. Ali poderiam ter um negócio, receber pessoas e também construir uma família. Uma casa no campo com a família!
Então, durante um, dois anos, andaram a descer e a subir, de sul a norte, à procura do seu terreno – da sua terra.
E foram de noite, e entregaram projectos na Câmara, pagaram sinais e falaram com dezenas de pessoas e desesperaram pois não conseguiram nada.
A vontade de sair de Lisboa era grande  e eles conheceram quem lhes mostrou um outro mundo: África, Moçambique, Quirimbas, Ilha do Ibo.
E num ano eles venderam a casa romântica, viveram num pequeno, mas bonito apartamento com um terraço no Chiado, venderam esse apartamento e foram para um 3º andar no mesmo prédio, venderam o carro e deixaram o seu cão, o seu "bebé", em casa dos Pais dela – o labrador preto, que sempre quiseram desde o dia em que casaram, mas que um ano e meio depois de o terem, tiveram de o deixar.
Largaram tudo e correram para África, como se fosse uma corrida ao ouro!
A sensação de África era-lhes estranha e a diferença com todo o seu mundo, durante 10 anos de casamento, em Lisboa, era abismal. Mas eles aceitaram e foram. Só se têm um ao outro, num sítio onde até sair água  pela torneira é uma celebração de alegria. Onde nada se assemelha a nada – apenas os move um sonho, tendo deixado os amigos e a família, a sua base e a sua casa.
Os outros, que os trouxeram até aqui – eu, narrador, escrevo em Moçambique – também os largaram e venderam-se à ambição e ao sonho emprestado.
Traídos, não desistiram e aqui ficaram. Os dois num outro mundo, numa ilha, aguardam pelo universo e pelo tempo, já que por aqui fizeram tudo o que lhes era possível.
Não sabem se terão outra resposta negativa, quantas mais casas terão de ver, por quanto mais irão adiar o sonho. Nas poucas certezas que lhes restam, sabem que se amam um ao outro e que por muito que a vida os obrigue a mudar de rumo e a barrar-lhes o caminho, eles avançam sem medo – sempre os dois, sempre juntos.
A história será sempre deles e o amor é o que lhes resta, neste mundo em que o pó é mais forte do que o homem.
A aventura assim continua, mesmo tanto tempo depois.   


**excertos do meu Diário Pessoal escrito durante a minha estadia em Moçambique, entre Julho de 2010 e Agosto de 2011

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