Contos, Selemane e outras coisas
(Ontem fiz o que talvez já devia ter feito há algum tempo; tirei a vergonha de cima de mim e publiquei os meus contos africanos no facebook, a ver se a malta gostava, e gostou! Então vou publicando por partes e assim, para que os meus leitores não se sintam excluídos, aqui fica a 1ª parte do conto do Selemane. São contos escritos cá em Portugal, mas as imagens são de Moçambique.
Quem me conhece e sabe o mal que estou a passar nesta fase tão dura da minha vida, só me diz: escreve, mulher, escreve!
E na verdade não me sai nada. Ou por outra, preciso de despejar "isto" primeiro para que venha o mais recente sentir da minha memória.
Amanhã já vem coisa fresca, sofrida. Com as emoções bem lá nos píncaros, como eu gosto.
Até lá deixo-vos na companhioa de um pescador que "conheci" no Ibo.
Espero que gostem.)
Selemane
é um pescador.
E como em todas as histórias de pescadores, ele passa os dias
dentro de água a puxar redes, enquanto na praia as mulheres aguardam com os baldes
para recolher o peixe. Este pescador sai ao romper do dia, numa
piroga, uma casquinha da largura das suas ancas, 45 centímetros e 11
milímetros, e do comprimento de um espadarte alongado e curvado sobre o seu
fundo, de um charéu com 12 quilos, ou duas garoupas de 5 quilos, ou até um atum, duro com um pneu, pesado e teso.
O
pescador Selemane passa no mangal, apanha marisco, afunda os pés em lama negra
e morna, deixando que o lodo hipnotize os seus membros inferiores. O suor
escorre pelo rosto, mistura-se com a pele e como um manto transforma o tronco
nu numa escultura em pau-preto, maciça e pesada.
Selemane,
tal como todos os pescadores, nas histórias de pescadores, começou a pescar
quando era um menino. Uma criança de calções rotos, de camisa rendilhada pelas
traças, de feridas nos pés e nas mãos, de barriga espetada, sem saber
distinguir a manhã da noite, pois tudo o que ele fazia, com ou sem sol, era sair
para a pesca com o Pai. Empurrar o barco para além da maré, puxá-lo dos bancos
de areia com a canas de bambu, abrir a vela latina e desenhar paralelas pelo
mar.
O
barco do Pai de Selemane sempre navegou até ao dia em que apanharam aquela
tempestade - as histórias de pescadores têm tempestades. Houve um dia em que o
Pai de Selemane saiu para a pesca e não voltou nessa tarde, nem no dia
seguinte. E no Continente viram-se nuvens negras de chuva e clarões de uma
trovoada forte. Um ciclone abateu-se sobre aquele pedaço de mar e ninguém
voltou, nem o bote “Único Caminho”.
O
pescador continuou a pescar, pois não havia mais nada que ele soubesse fazer no
mundo. No seu mundo, na sua aldeia, na sua palhota, debaixo daquele telhado de
colmo, Selemane não queria verdadeiramente fazer parte da história de um
pescador. Ele queria fazer parte de uma outra vida, mas se lhe perguntassem
para onde ia, ele respondia que ia para o mar. Não sabia fazer mais nada que
não fosse encher-se de sal e de vento todos os dias, cortar as mãos com as
linhas, sentir o corpo húmido e os pés sempre molhados. Encaixar-se na sua
casquinha, pegar no remo e atravessar o canal até ao mar alto. Pescar. Voltar a
casa, para junto da mulher e dos filhos, comer a papa de farinha com o caril de
peixe, mastigar lentamente e de vez em quando trincar uma manga.
Como
era filho de pescador, os seus filhos seriam pescadores e os filhos deles
pescadores e os filhos dos filhos pescadores, até sempre. Até ao infinito. Que
era bem depois do sítio onde ele um dia pescou um tubarão. Assim como tudo se
repete, toda a natureza da sua vida sempre se repetiu – a sua mulher carrega
nas costas os filhos, tal como ela veio às costas da Mãe, e sua Mãe às costas
da Avó velhinha, e ela nas costas de outra mulher, até sempre. Até ao infinito.
São
5h30 da manhã, Selemane está dentro de água, olha para os pés e para um buraco
de pele lisa perfeitamente redondo, como se tivesse entrado uma rolha pelo pé.
Foi quando espetou uma raiz de mangal no pé. Era pequeno. Não se lembra de ser
pequeno. Às 5h32 da manhã, dentro de água, talvez Selemane sempre tivesse sido
um pescador e nunca uma criança.
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