Souvenirs em Cacos


Já aqui disse que de Moçambique não trouxe o meu afia-lápis.
Afinal, podem perguntar, o que é que se traz mesmo de Moçambique? Além de 5 quilos de capulanas, transformadas em fronhas de almofada, para uma suposta casa de campo, além do caju torrado e das bolsinhas em palhinha, não há muito mais que se traga.
Os souvenirs são antes milhares de fotografias, amizades, cheiros, experiências, sensações.
Mas certo dia, em Lisboa, andando eu pelas minhas arrumações compulsivas, encontrei o saco de plástico fechado com dois nós e imediatamente reconheci-o. É o saco dos pedaços, dos cacos de loiça que apanhei na praia do Ibo, tardes e manhãs passadas na maré baixa.
Começou com a Lucie, a nossa amiga suíça que vive no Ibo e está activamente a construir um eco-lodge. Em casa dela vi as cestas de palhinha, as mesmas que as mulheres usam para peneirar a farinha de mandioca e o arroz, cheias de loiça partida.
Ela explicou-me que vinha tudo da praia, resultado de longos passeios à beira-mar. A loiça correspondia à mercadoria que os barcos, entre 1600 e 1900, traziam até ao Ibo pela troca de escravos, mica, sisal e madeiras nobres. Em alguns pedaços distinguimos o carimbo: holandês, inglês e chinês.
Pedi-lhe  "autorização" para a copiar nessa empresa, e começamos as duas a passar horas na maré baixa a apanhar os cacos. Era um espécie de terapia, de mata-tempo, da longa espera de notícias e novidades das nossas intermináveis tentativas de começar a fazer qualquer coisa na Ilha.
Cada caco tem um significado, quase os consigo distinguir um por um e lembrar-me onde e quando o apanhei.  
A certa altura chegámos a escolher os cacos, numa selecção natural de um coleccionador exigente. Eu comecei a dedicar-me ao azul cantão, a Lucie preferia a loiça verde e preta, mais ao século XIX.
Tenho pedaços de cantão iguais às tigelas e pratos que estão no Museu da Marinha na Ilha de Moçambique, quando, há 10 anos atrás, uma expedição de holandeses recuperou o lastro de dois navios que afundaram ao largo da Ilha, sendo tudo de Dinastia Ming para cima. Ou seja, tudo antigo e carregado de história.
O caco maior, que vêem no canto inferior direito, apanhei-o numa tarde de calor, quando já estava de regresso a casa; vi-o debaixo de um barco, na sombra. Estava à minha espera!
Foi o maior pedaço que consegui encontrar!
Por lá continua a Lucie, penso eu, nas manhãs e nas tarde de maré baixa a tirar da água salgada e da areia, os restos de uma História e de um tempo que já passou. Numa Ilha tão longínqua que às vezes penso se terei mesmo vivido ali.
Eu trouxe-os comigo, quase que não me consigo separar deles. A ideia é colocá-los numa parede, na mesma casa onde vamos pôr as fronhas de capulana!
Que ainda não existe, mas com que sonhamos há muitos anos.



Comentários

Anónimo disse…
Lindíssimo.E que tal numa vitrine bem iluminada.Tens saudades?
Eu acho que tens algumas e daqui a uns tempos vais ter muitas saudades.Tu e o Alex.
Beijos e abraços.Por lá continua a Lucie.

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