Conto Selemane, segunda parte e fim (não sei porque está com esta configuração estúpida)


Quando o sol fazia sombra junto aos coqueiros da praia e se reflectia sobre as rochas do mexilhão, era a hora de voltar para casa. Selemane deixou o barco na praia, e levou os baldes de conchas e as armadilhas de camarões e lagostas que recolheu entre as marés.
Entrou na palhota, sacudiu os chinelos cansados e a roupa ressequida. Chegou-se ao balde de água doce e sentiu o cheiro do almoço na panela: lulas. Os olhos das lulas eram cuidadosamente comidos pelo gato que se punha muito direito junto às mulheres que pilavam a mandioca. O calor escorria e uma fumaça branca envolvia a Mãe, a filha e o gato, numa névoa em que até uma acácia vermelha estendia os braços para apanhar os vapores de mandioca.
Os rapazes deviam estar a chegar da escola.
- Os meninos devem continuar na Escola, Noémia! Eles não têm de ser pescadores e podem ser outra coisa, podem continuar a viver ao pé de nós. Não é preciso eu levá-los para o mar. Se calhar eles não têm de ser pescadores.
Nunca se ouviu tal coisa, toda a aldeia iria fazer pouco daquela família.
- A Escola é só até aprenderem a ler e a fazer contas. Os nossos filhos vão pescar. Não sabes isso?
Noémia não desviava o seu olhar do pote de madeira onde a farinha era moída.
- E se eles quiserem ser outra coisa, como carpinteiro ou pastor?
O gato terminava os olhos de lula e agora debruçava-se sobre uma concha que caia do balde, andando sorrateiramente perdida, a caminho de uma saída. O bicharoco meteu as patas de fora e pôs-se a picar a terra a caminho da fuga.
Os meninos chegaram. Sentaram-se na esteira. Engoliram as lulas com as mãos que cavavam um fosso na panela da xima e a colher que apanhava os quadrados brancos tingidos de caril. No fim havia pão para chupar o molho. Havia também o silêncio que se chupava com o pão. Selemane não conseguiu falar com os filhos, a mulher calada mastigava, a filha já se tinha esquecido do almoço e olhava para a porta à espera de ninguém, como esperava todos os dias por nada, com o mesmo ritmo com que arranjava as suas tranças. Ela e as amigas, umas às outras, as mãos de umas na cabeça da outra e assim sucessivamente, num carrossel de pentes e de elásticos.
Um dos filhos interrompeu o silêncio, perguntando a Selemane se nesse sábado poderia sair com ele na casquinha. E talvez visse o Pai a pescar um atum, ou até um espadarte, como no outro dia o filho do Mamude viu o Pai a puxar um desses enormes peixes de bico de espada.
A mulher esboçou um sorriso silencioso, quase malicioso - que ideia mais parva querer que os filhos sejam carpinteiros! Pensava ela e pensava todo o Universo ao mesmo tempo. Até o gato devia estar a pensar no mesmo agora que se punha a dormir na sombra da acácia. Que ideia mais parva!

Selemane deixou-se levar pelo peso das pernas até à ponta da praia, a ver se mais alguém chegava do mar nessa tarde. A padeira já enchia o forno de lenha e preparava o pão que vinha cozido com o por do sol. Selemane sentou-se e pensou.
Não é costume os pescadores, nas histórias de pescadores, pararem para pensar, mas mesmo assim, Selemane sentou-se e pensou.
Pensou que em toda a sua vida nunca tinha pensado, nunca se tinha questionado, nunca tinha feito uma pergunta. Nunca. Apenas porque a vida lhe dissera que aquilo era tudo o que poderia esperar. Nada mais. E hoje perguntava: porquê? Os filhos têm de ser pescadores? A mulher riu-se daquela ideia tão tola, como se fosse uma brincadeira.
Passaram os meninos dos bolos fritos. Também aqueles meninos deviam vender bolos a vida toda, porque a Mãe os cozinhava, e os punha dentro do balde. E as meninas daqui a pouco vendiam o pão nos alguidares, tapados com as tampas das panelas perdidas, faziam o troco e guardavam as notas debaixo das roupas. Também elas vendiam pão e vão vender pão toda a vida. Porque já os outros assim o faziam, e antes desses os outros, e a seguir a eles a mesma coisa. Até ao infinito.
Pôs as mãos na cabeça, sentia-se quente. De onde lhe vinham estas ideias?
Ao fundo as cegonhas ajeitavam-se nos topos do mangal. Não deixava de ser curioso observá-las a ocupar os seus lugares, tal e qual como quando o barco sai para o continente e os passageiros vão-se ajeitando no espaço, nos bancos, no chão - encontrando o seu lugar.
As cegonhas chegavam a pouco e pouco, e pousavam, sabendo perfeitamente cada uma o lugar onde ficar. Porque antes delas as outras também já o faziam, e as que vierem a seguir vão repetir o mesmo movimento.
Estou a ficar louco? É melhor visitar o curandeiro – pensou. Tenho de lhe falar nestas minhas vozes, nesta voz que ouço e que não consigo perceber estas perguntas que me faz. Deve ter sido do vento norte que me entrou no peito.
No regresso a casa, passou pela carpintaria. Lá estavam os carpinteiros a trabalhar na madeira, em qualquer outra coisa que não era o sal e o cheiro a peixe. Qualquer outra vida, que talvez qualquer um pode ter.
Selemane ainda sonhou nessa noite. O filho mais velho, Ibraimo, pediu-lhe para ir para a Oficina dos carpinteiros e o seu primeiro trabalho foi construir um bote, e quando Selemane foi ver o bote, era igual ao “Único Caminho”. O mesmo recorte da madeira, as mesmas cores. E Selemane, o seu Pai e Ibraimo saíram para o mar. E dessa vez não foram pescar. Os três no “Único Caminho”, foram até ao infinito.
Na manhã seguinte, Selemane foi à palhota no curandeiro no meio da aldeia. Receitou-lhe chá de maçanica à noite com duas gotas de sangue de raia. E depois, com a maré, saiu para o mar.

Comentários

Anónimo disse…
Parece estares sempre com saudades.Será?.

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