Manta de Retalhos - Ana
Há um tema que me assalta com frequência e personagens que me agitam cada vez mais.
São os velhos. Os idosos - que velhos são os trapos, diz o povo.
E quanto mais velhos, mais lá trazem dentro. Para mim são como "arquivadores" com duas pernas e dois braços. Têm dezenas de pastas (anos que passam), centenas de temas (dias), milhares de palavras e de sentimentos (horas e minutos).
Tenho conhecido muitos, aqui pela cidade. Uns fui a casa deles, outros vou conversando na rua, porque quando se tem um cão o mundo parece que fica cheio de gente com cães.
Há uma coisa que os velhos têm e nós não - TEMPO.
E eles oferecem-nos esse bem raro, mas nós não temos tempo para o tempo deles.
Não há tempo para os velhos.
Entrei na casa de uma senhora no centro, centro da cidade. Carros, gente, cartazes de publicidade lá fora - o tempo a correr. Lá dentro, estava o tempo todo empacotado em divisões vazias, fotografias muito antigas, quadros, soalho velho, uma cozinha decadente, uma secretária e uma máquina de escrever.
Essa senhora chama-se Ana e tem 91 anos. Vive sozinha. Vi fotografias da Ana com uns 50 anos. Fotografias daquelas do Natal, com todos vestidos de missa do galo, com os adultos lá atrás e os mais pequenos à frente, restos de papel de embrulho e fitas. Havia outra da Ana de vestido comprido e um homem ao seu lado de smoking, as cores já muito ténues mas dava para ver que ela tinha um vestido bonito.
A Ana não sai de casa há 4 anos. Os filhos, ou deverão ser os netos, abandonaram-na. Disseram-me que era por ela ter mau feitio e por nunca ter gostado das noras. Quando a visitei não encontrei mau feitio nenhum. Separavam-nos 60 anos de vida. Agarrei as mãos dela e senti uns dedinhos de pele e osso muito frios e frágeis. Os olhos eram dois buracos águados muito fundos. E Ana só queria dar-me o seu tempo que lhe sobrava aos montes, preso ao roupão velho com que andava pela casa fria.
Vamos todos lá chegar um dia, ao tempo da Ana. E nunca queiram adivinhar que daqui a 60 anos a vossa vida está tal e qual o que é hoje. O que eu faço, agora, é aceitar o tempo dos velhos, resmungões ou calados. Recebo aquilo que eles têm a mais e dou-lhes o que tenho a menos.
Para eles foi um ano que passou, para nós foram poucos minutos.
Ana, dei-te mais um bocado do meu tempo, mesmo que não o saibas ele aqui ficou para que te custe menos a passar os dias.
Foto: Jardim da Gulbenkian, Nov. 2008
São os velhos. Os idosos - que velhos são os trapos, diz o povo.
E quanto mais velhos, mais lá trazem dentro. Para mim são como "arquivadores" com duas pernas e dois braços. Têm dezenas de pastas (anos que passam), centenas de temas (dias), milhares de palavras e de sentimentos (horas e minutos).
Tenho conhecido muitos, aqui pela cidade. Uns fui a casa deles, outros vou conversando na rua, porque quando se tem um cão o mundo parece que fica cheio de gente com cães.
Há uma coisa que os velhos têm e nós não - TEMPO.
E eles oferecem-nos esse bem raro, mas nós não temos tempo para o tempo deles.
Não há tempo para os velhos.
Entrei na casa de uma senhora no centro, centro da cidade. Carros, gente, cartazes de publicidade lá fora - o tempo a correr. Lá dentro, estava o tempo todo empacotado em divisões vazias, fotografias muito antigas, quadros, soalho velho, uma cozinha decadente, uma secretária e uma máquina de escrever.
Essa senhora chama-se Ana e tem 91 anos. Vive sozinha. Vi fotografias da Ana com uns 50 anos. Fotografias daquelas do Natal, com todos vestidos de missa do galo, com os adultos lá atrás e os mais pequenos à frente, restos de papel de embrulho e fitas. Havia outra da Ana de vestido comprido e um homem ao seu lado de smoking, as cores já muito ténues mas dava para ver que ela tinha um vestido bonito.
A Ana não sai de casa há 4 anos. Os filhos, ou deverão ser os netos, abandonaram-na. Disseram-me que era por ela ter mau feitio e por nunca ter gostado das noras. Quando a visitei não encontrei mau feitio nenhum. Separavam-nos 60 anos de vida. Agarrei as mãos dela e senti uns dedinhos de pele e osso muito frios e frágeis. Os olhos eram dois buracos águados muito fundos. E Ana só queria dar-me o seu tempo que lhe sobrava aos montes, preso ao roupão velho com que andava pela casa fria.
Vamos todos lá chegar um dia, ao tempo da Ana. E nunca queiram adivinhar que daqui a 60 anos a vossa vida está tal e qual o que é hoje. O que eu faço, agora, é aceitar o tempo dos velhos, resmungões ou calados. Recebo aquilo que eles têm a mais e dou-lhes o que tenho a menos.
Para eles foi um ano que passou, para nós foram poucos minutos.
Ana, dei-te mais um bocado do meu tempo, mesmo que não o saibas ele aqui ficou para que te custe menos a passar os dias.
Foto: Jardim da Gulbenkian, Nov. 2008
Comentários
Acho que por comodismo, egoísmo, preguiça ou talvez mesmo pelo receio de entrar numa casa velha com cheiro a "trapo" deixamos de ajudar ou de fazer companhia a essas pessoas. Achamos mesmo que é uma perda do tempo que não temos!