Tinta permanente
Foi nessa altura que comecei a ter consciência de mim. Principalmente do meu corpo que teimava em crescer depressa de mais, se me comparasse com as minha amigas. Com 13 anos saí à noite pela primeira vez com o meu irmão (3 anos mais velho) e ninguém questionava se teria ou não 16 ou 17 anos.
Fiquei grande de mais, depressa de mais. O cabelo grande, os pés grandes, tudo grande. Quando tudo o que eu mais queria era ser menos grande.
Nessa altura era tão ou mais alta do que a maioria dos rapazes da minha turma, o que mais uma vez me fazia querer desampliar o meu tamanho. Foi aqui que começou uma consciência de mim, como nunca antes a teria sentido.
Esta é aquela fase a que se dá o nome de "adolescência", em que é suposto ser muito parvos e muito idiotazinhos e só dar dores de cabeça aos Pais.
Eu, enfiada num corpo que não reconhecia, era a que tinha os cadernos todos forrados, nunca tinha tido um namorado, andava de bicicleta, comia Bolycaos, tinha boas notas, estudava sozinha, juntava as semanadas para comprar calças de ganga da Benetton, usava filofax, post-its de várias cores, estojos, etiquetas e separadores, colava os horários das aulas no armário e escrevia com canetas de tinta permanente.
E como eu adorava escrever com canetas de tinta permamente. Tinha várias canetas e cartuchos de várias cores. Muitas vezes era um desatino porque aquilo abria-se tudo no meio das aulas, era tinta por todos os lados, os meus dedos todos sujos.
Há pouco tempo, estive em arrumações (lá vem a minha doce obsessão) e descobri das minhas últimas canetas de tinta permanente. Já nos tempos de trabalho profissional corporativo, qual manager da indústria farmacêutica, recebi esta caneta de presente, pelas minhas boas prestações. Engraçado que pouco depois deram-me um chuto no rabo e mandaram-me apanhar caracóis (graças a Deus!).
Nas minhas gavetas ainda recuperei uma carteirinha de cartuchos de tinta azul. Limpei o aparo que já tinha a tinta ressequida com um lenço de papel ligeiramente molhado. Repeti tudo como há 20 anos atrás. Fiz uns rabiscos e a pouco e pouco a tinta começou a fluir pelo aparo e eu escrevi. Arrumei a caneta no meu estojo.
Agora, com a minha caneta de tinta permanente, gostava de escrever aquela miúda, cheia de mundo interior e de pontos de interrogação na cabeça, que não tinha mal em sentir-se um bocadinho à parte do resto do mundo e que mesmo sendo grande, ela era uma pessoa maravilhosa, que acabaria por se tornar numa mulher bonita cuja paixão da sua vida seria poder escrever para sempre.
Comentários
É tão genuino e salutar...que mais parece uma lavagem ao espírito....e faz tão bem à alma, não achas?